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quinta-feira, 7 de julho de 2022

Editorial - A ideia de poder X o poder das ideias


Tempos conturbados estamos vivendo: guerra sem fim à vista, com terríveis consequências que se espalham pelo mundo todo; muitos governos batalhando, mais ou menos republicanamente, para se manterem no poder mesmo com indícios claros de desconfiança em sua capacidade de resolver os problemas do país; crimes de abuso sendo acobertados, crimes de ódio invadindo persistentemente o noticiário da manhã, da tarde e também da noite…

O que está acontecendo com este nosso mundo? 



Onde está a cola que deveria nos manter unidos, cuidando um do outro, e todos cuidando de quem mais precisa de cuidados? 

A religião vê como sua função lidar com isso: diz que D'us é a voz do outro dentro nós, que é D'us quem nos ensinou a amar nossos vizinhos como a nós mesmos, a receber bem o estrangeiro, cuidar dos pobres, da viúva e do órfão, olhar pelo invisível, alimentar o faminto, dar abrigo a quem está na rua e calibrar a justiça com compaixão.

Já a vertente biológica na Teoria da Evolução de Darwin afirma que é o ambiente, por meio de seleção natural, que determina a importância da característica do indivíduo ou de suas variações, e os organismos melhor adaptados a esse ambiente têm maiores chances de sobrevivência, deixando um número maior de descendentes. Ou seja, a competição pelos insuficientes recursos é natural e esperada. Mas mesmo Darwin chega à conclusão de que a civilização evolui em grupos, não ao nível individual, o que sugere que é possível a adaptação e a vitória com colaboração…

Contemporâneo de Darwin, Nietzsche sugeriu que o Ocidente abandonasse a ética judaico-cristã pelo que ele chamou de “vontade do poder”. Mas não há nada original na vontade do poder. Ela existe desde os dias de Caim e seu preço é o banho de sangue perene. Uma grande frase de Nietzsche, frequentemente citada, é: “Quem tem um Porque viver consegue suportar praticamente qualquer Como”. De fato, se temos uma razão, um propósito na vida, a caminho do futuro, conseguimos forças para ultrapassar traumas do passado e sobreviver por entre as dores do presente. Ironicamente, Nietzsche parece ter percebido que o abandono da fé em D'us tende a matar este propósito de vida pois fez seu personagem afirmar que Deus está morto.

Crimes de ódio, com base na fúria do preconceito, sempre ocorreram ao longo da história mas atualmente com a amplificação da comunicação, e da Internet chegamos a dias pesados, absurdos.

A ideologia, especialmente quando se torna fanatismo, é uma poderosa fonte de ódio. A doutrinação ideológica costuma reagir a ódios ancestrais que interessa perpetuar, e a ambições de poder.

O ódio é especialmente grave quando, praticado pelos próprios líderes de sociedades, além de mudar pensamentos e emoções, proclama e prega a condenação moral e a desumanização dos odiados.

É muito grave e prejudicial quando acontece no próprio governo de um país e se manifesta especialmente na educação dos mais jovens. Costuma ser embasado por mentiras ou meias-verdades sobre a história do país e sobre as responsabilidades e causas e causadores dos males presentes que afetam a parte ou o conjunto de sua população. O grupo que sustenta uma ideologia se considera moral e até intelectualmente superior aos demais. Essa superioridade gera ódio e o ódio abriga sempre o desejo de um mundo sem o odiado. O pior de certas ideologias é que também contribuem para o ódio, ao legitimá-lo.

Os processos que mudam o sentimento de ódio são lentos e exigem compreender suas raízes. Definitivamente, o ódio deve ser combatido com compreensão e ação, o que implica reconhecer sua existência, muitas vezes sutil. Não se pode lutar contra o ódio se o consideramos aceitável ou tolerável.

Uma boa educação para combater o ódio deveria nos ensinar a ser sábios mais do que inteligentes, pois o ódio nunca resolve problemas —o que faz é sempre agravá-los e fomentá-los.

O sociólogo Matthew Williams dedicou sua vida a compreender as raízes dos nossos preconceitos, dos mais cotidianos àqueles que terminam em extermínio em massa, e como o temor do desconhecido transforma-se em violência e opressão. 

Combinando neurociência, psicologia, sociologia e economia, seu livro A ciência do ódio, publicado em outubro de 2021, investiga como a raiva permeia a história da humanidade em todos os cantos do mundo desde nossas origens e como podemos, no século XXI, combater novas e velhas formas de preconceito.


Voltando ao crítico Nietzsche, ele disse: “Considerem os estudiosos judeus: todos eles têm a lógica em alta conta, que é para um acordo convincente por força de razões; eles sabem que com isso eles tendem a ganhar mesmo quando enfrentam preconceitos de raça ou classe…”



De qualquer forma o judaísmo é uma grande alternativa para combater o ódio, afirmava rabbi Jonathan Sacks, z’l’. A escolha que a humanidade enfrenta em cada época está entre a ideia de poder e o poder das ideias. O judaísmo sempre acreditou no poder das ideias e este permanece sendo o único meio não violento de mudar o mundo.


Juliana Rehfeld

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