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segunda-feira, 23 de outubro de 2017

VOCÊ SABIA? - Machado de Assis, o bruxo do Cosme Velho

Você sabia que Machado de Assis, o escritor maior da literatura brasileira e um dos maiores autores da literatura de língua portuguesa, o criador da deliciosa Capitu e do sorumbático Dom Casmurro, tratou o Judaísmo com respeito e profundidade  em  uma de suas inúmeras  temáticas desconhecidas pelo público?


Machado de Assis


Anita Novinsky, em seu livro “O Olhar Judaico em Machado de Assis“, foi uma das primeiras pesquisadoras a estudar este tópico em seus poemas.

Anita Novinsky, pesquisadora e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo  (USP) - foto: Gazeta do Povo

Por Machado ter sido rotulado de poeta menor, pouca atenção tem sido dada aos seus versos.
Eu mesma nunca os tinha lido com interesse até agora.
A verdade é que Machado iniciou sua vida de escritor como poeta porém sua obra, "Obra Completa de Machado de Assis" em 31 volumes, abrange praticamente todos os gêneros literários.
Abaixo está o soneto por ele dedicado a Antonio José, o Judeu, um escritor e dramaturgo português, nascido no Brasil colônia, que após uma rica produção literária e total reconhecimento pela sociedade lisboeta por suas irreverentes e divertidas  comédias, acabou sendo degolado e queimado em praça pública pela Inquisição:

        “Antônio José (21 de outubro de 1739).
        Antônio, a sapiência da Escritura
        Clama que há para a humana criatura
Tempo de rir e tempo de chorar;
         Como há um sol no ocaso, outro na aurora.
Tu, sangue de Efraim e de Issacar,
         Pois que já riste, chora. (MACHADO DE ASSIS)”


"Poucos sabem, mas Machado começou sua vida literária como poeta. Foi fazendo sonetos para os jornais que o escritor de D. Casmurro se firmou no mundo literário. E como muito bem aponta Marcelo Corrêa Sandmann, Machado foi “um grande conhecedor da tradição da poesia e das tendências poéticas de seu tempo, em língua portuguesa ou noutras literaturas, bem como de um excelente artesão do verso”. (SANDMANN, 2008,p.1)
Exemplo disto é este poema curto de seis versos em que se mesclam tanto as referências ao Eclesiastes como a vida ambígua do trágico dramaturgo. Se o Eclesiastes apresenta-nos a filosofia das contradições e do paradoxo, uma vez que para a humana criatura há tempo de “rir e tempo de chorar”; “tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou”; “tempo de nascer e tempo de morrer”; também Antônio José experimentou a dubiedade de um Portugal que lhe deu tanto a doce glória dos palcos como a ignominiosa morte na fogueira. Machado enfatiza a descendência judaica de Antônio José ao fazer menções às grandiosas tribos de Efraim e Issacar. Efraim era neto de Jacó e sua descendência deu origem a figuras famosas do primeiro testamento como Josué, Débora e Samuel. Issacar, filho de Jacó, também deu origem a uma das principais tribos do lado oriental do Tabernáculo, ao lado de seus irmãos Judá e Zebulom. Anais do SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.
Estas referências na pena de Machado não são de forma nenhuma aleatórias, já que a perseguição ao grupo hebreu remonta aos tempos bíblicos, desde as errâncias de Abraão pelo deserto, tendo se acirrado no Renascimento com a Inquisição portuguesa e a queima de milhares de cristãos-novos, dentre eles, muitos poetas e artistas como o próprio autor de Guerras do Alecrim e da Manjerona. De nada adiantou sua reputação como dramaturgo genial. Antônio José perdeu a vida com 34 anos, no auge da fama e da criatividade. "
Com relação à temática do Judaísmo abordada repetidas vezes por Machado, lembramos de outro poema de sua autoria, A Cristã Nova, cujos versos me levaram à pergunta introdutória deste texto.
Conta o poema que o velho ancião judeu e sua filha Ângela, uma cristã recente, habitam a incipiente Guanabara, em uma simples cabana ao pé do mar.
Ali se situa a bela baía e seus arredores, terras estas que portugueses e franceses já há algum tempo disputam, em combates ruidosos e sangrentos.
Nuno, um verdadeiro cristão português, é o enamorado de Ângela e um soldado valoroso sob o comando do “ardido Bento“, no ano de 1701, na luta encarniçada para expulsar definitivamente os franceses do Brasil.
Sob o temor de Ângela, Nuno segue a perfilar-se para a batalha, deixando a moça aflita e pensativa. Nuno leva consigo o amor da mulher amada e a bênção do ancião.
Os portugueses vencem, mais por valentia e desejo de proteger a terra natal do que por excelência na guerra, e Nuno volta alegremente para sua amada.
Mas nem sempre a vitória na guerra aponta para a vitória final.
A alegria de Ângela ao ver seu amado voltando da batalha, incólume e feliz, dissipa-se com a decisão do Santo Ofício de levar seu velho pai ao tribunal da Inquisição.

A Cristã Nova
Primeira Parte
Canto IV

Sentada
Aos pés do velho estava a amada filha,
Bela como a açucena dos Cantares,
Como a rosa dos campos. A cabeça
Nos joelhos do pai reclina a moça,
E deixa resvalar o pensamento
Rio abaixo das longas esperanças
E namorados sonhos. Negros olhos
Por entre os mal fechados
Cílios estende à serra que recorta
Ao longe o céu. Morena é a face linda
E levemente pálida. Mais bela,
Nem mais suave era a formosa Rute
Ante o rico Booz, do que essa virgem,
Flor que Israel brotou do antigo tronco,
Corada ao sol da juvenil América.

Canto VIII
Taciturno
Esteve longo tempo o ancião. Aquela
Alma infeliz nem toda era de Cristo
Nem toda de Moisés; ouvia atento
A palavra da Lei, como nos dias
Do eleito povo; mas a doce nota
Do Evangelho não raro lhe batia
No alvoroçado peito,
Soleníssima e pura... Descambava
No entanto a lua. A noite era mais linda,
E mais augusta a solidão. Na alcova
Entra a pálida moça. Da parede
Um cristo pende; ela os joelhos dobra,
Os dedos cruza e reza, - não serena,
Nem alegre também, como costuma,
Mas a tremer-lhe nos formosos olhos
Uma lágrima.

Segunda Parte
CANTO VI
Neste instante
Cresce o tumulto exterior. A virgem
Medrosa toda se conchega ao colo
Do velho pai. "Ouvis? Falai! é tempo!"
Nuno prossegue. "Este comum perigo
Chama os varões à ríspida batalha;
Com eles vou. Se um galardão, entanto,
Merecer de meus feitos, não à pátria
Irei pedi-lo; só de vós o espero,
Não o melhor, mas o único na terra,
Que a minha vida... " Rematar não pôde
Esta palavra. Ao escutar-lhe a nova
Da iminente peleja
E a decisão de combater por ela,
Inteiras sente as forças que se perdem
A donzela, e bem como ao rijo vento
Inclina o colo o arbusto
Nos braços desmaiou do pai. Volvida
A si, na palidez do rosto o velho
Atenta um pouco, e suspirando: "As armas
Empunhai; combatei; Ângela é vossa.
Não de mim a havereis; ela a si mesma
Toda nas vossas mãos se entrega. Morta
Ou feliz é a escolha; não vacilo:
Seja feliz, e folgarei com ela..."

Canto VII

Sobre a fronte dos dous as mãos impondo
Ao seio os conchegou, bem como a tenda
Do patriarca santo agasalhava
O moço Isaac e a delicada virgem
Que entre os rios nasceu. Delicioso
E solene era o quadro; mas solene
E delicioso embora, ia esvair-se
Qual celeste visão, que acende a espaços
O ânimo do infeliz. A guerra, a dura
Necessidade de imolar os homens,
Por salvar homens, a terrível guerra
Corta o amoroso vínculo que os prende
E à moça o riso lhe converte em lágrimas.

Canto VIII

Foge à estância da paz o ardido moço;
Esperança, fortuna, amor e pátria
A guerrear o levam. Já nas veias
O vivo sangue irrequieto pulsa,
Como ansioso de correr por ambas,
A bela terra e a suspirada noiva.

CANTO IX

Entre os fortes alunos que dirige
O ardido Bento, a perfilar-se corre
Nuno. Estes são os que o primeiro golpe
Descarregam no atônito inimigo.
Do militar ofício ignoram tudo,
De armas não sabem; mas o brio e a honra
E a lembrança da terra em que primeiro
Viram a luz, e onde o perdê-la é doce,
Essa a escola lhes foi. Pasma o inimigo
Do nobre esforço e galhardia rara,
Com que inda nos umbrais da vida que orna
Tanta esperança,  tanto sonho de ouro,
Resolutos a morte encaram, prestes
A retalhar nas dobras
Da vestidura fúnebre da pátria
O piedoso lençol que os leve à campa,
Ou com ela cingir o eterno louro.

CANTO XII

 Voa o moço à estância
Do ancião; e ao por na suspirada porta
Olhos que traz famintos de encontrá-la,
Frio terror lhe empece os membros. Frouxo
Ia o sol transmontando; lenta a vaga
Melancolicamente ali gemia,
E todo o ar parecia arfar de morte
Qual se pálida a vira, já cerrados
Os desmaiados olhos,
Frios os doces lábios
Cansados de pedir aos céus por ele.
Nuno estacara; e pelo rosto em fio
O suor lhe caiu da extrema angústia;
Longo tempo vacila;
Vence-se enfim, e entra a mansão da esposa.

CANTO XIII

Quatro vultos na câmera paterna
Eram. O pai sentado,
Calado e triste. Reclinada a fronte
No espaldar da cadeira, a filha os olhos
E o rosto esconde, mas tremor contínuo
De um abafado soluçar o esbelto
Corpo lhe agita. Nuno aos dous se chega;
Ia a falar, quando a formosa virgem,
Os lacrimosos olhos levantando,
Um grito solta do íntimo do peito
E se lhe prostra aos pés: "Oh! vivo, és vivo!
Inda bem... Mas o céu o céu, que por nós vela,
Aqui te envia... Salva-o tu, se podes,
Salva meu pobre pai!" Estremecendo,
Nela e no velho fita Nuno os olhos,
E agitado pergunta: "Qual ousado
Braço lhe ameaça a vida?" Cavernosa
Uma voz lhe responde: "O santo ofício!"
Volve o mancebo o rosto
E o merencório aspecto
De dous familiares todo o sangue
Nas veias lhe gelou.

CANTO XIV

Solene o velho
Com voz, não frouxa, mas pausada, fala:
"Vês? todo o brio, todo o amor no peito
Te emudeceu. Só lastimar-me podes,
Salvar-me, nunca. O cárcere me aguarda,
E a fogueira talvez; cumpri-la, é tempo,
A vontade de Deus. Tu, pai e esposo
Da desvalida filha que aí deixo,
Nuno, serás.

CANTO XV

Um familiar lhe corta
O adeus último: "Vamos: é já tempo!"
Resignado o infeliz, ao seio aperta
A filha, e todo o coração num beijo
Lhe transmitiu, e a caminhar começa.
Ângela os lindos braços sobre os ombros
Trava do austero pai; flores disséreis
De parasita, que enroscou seus ramos
Pelo cansado tronco, estéril, seco
De árvore antiga: "Nunca! Hão de primeiro
A alma arrancar-me! Ou se heis pecado, e a morte
Pena há de ser da cometida culpa,
Convosco descerei à campa fria,
Juntos a mergulhar na eternidade.
Israel tem vertido
Um mar de sangue. Embora! à tona dele
Verdeja a nossa fé, a fé que anima
O eleito povo, flor suave e bela
Que o medo não desfolha, nem já seca


De acordo com seus biógrafos, Machado de Assis foi um leitor assíduo do Antigo Testamento e do Eclesiastes e a saga dos judeus pelo mundo e a injusta Inquisição que cruelmente os perseguiu foi um tema que sempre muito o interessou. Em seus escritos, ele ora enaltece os judeus, ora preocupa-se com os sofrimentos  a eles infligidos.
A prova disto foi a quantidade de textos por ele escritos que abordam esta temática:

O Dilúvio
Espinosa
José de Anchieta
Relíquias da Casa Velha
Esaú e Jacó



Para Anita Novinsky, Machado, ao contrário do que muitos pensam, apresenta intensa sensibilidade política pelos fatos sociais de seu tempo, já que: (...) a geração de Machado, ou as próximas dele, tinham talvez mais consciência dos efeitos da Inquisição do que nós, brasileiros do século XX. Não há dúvida de que Machado de Assis sentia a questão judaica e olhava com profunda simpatia para o percurso dos judeus a través da história. (NOVINSKY, 1990, p.7)
 Interessante lembrarmos também Arnaldo Niskier, que aponta o fato de que Machado, ao elaborar poemas em homenagem aos cristãos-novos oprimidos, provavelmente estaria se deixando influenciar “pela sua condição de mulato, solidário na dor da perseguição aos judeus."



Sob a seta, Machado de Assis presidindo uma sessão da ABL, Academia Brasileira de Letras, em 31/10/1905, um de seus membros fundadores, e primeiro Diretor da mesma, apontado unanimemente pelos colegas. Fonte: G1


Este texto é uma colaboração de Itanira Heineberg para o grupo Esh Tamid. 

FONTES :
POESIAS – volume 18 – Machado de Assis
www.ileel.ufu.br  A.L. do Nascimento Miasso – Universidade Federal São Carlos - UFSCAR

Um comentário:

  1. Bom saber. Além de grande escritor, homem de sensibilidade e sabedoria.
    Um escritor desse naipe apenas engrandece a nos judeus pela sua apreciação e discernimento.

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