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quinta-feira, 17 de março de 2022

TRANSFORMAÇÃO: Entre a Escolha e o Sorteio



TRANSFORMAÇÃO: 
Entre a Escolha e o Sorteio




O mundo continua conturbado. Ucrânia ainda sob ataque da Rússia, tsunami no Japão, nova variante do vírus corona aumentando casos em todo o mundo. Relatos da China, Israel, vários países da Europa e também no Brasil alertam para uma nova onda. E... o mundo judaico celebra a Festa de Purim. Festa que lembra o que aconteceu na Pérsia séculos antes da entrada na era comum. 

Os judeus que lá moravam desde o exílio babilônico tinham uma vida comunitária sob o reinado de Assuero (Xerxes). A história é contada num pergaminho guardado em forma de rolo chamado de Meguilat Ester. A festa no dia 14 de Adar é precedida de um dia de jejum e comemorada com muita alegria. Convido a todos a verem um rolo da Meguilat Ester descoberto no Irã (atual nome da Pérsia). 
Em 2020, comentamos aqui sobre o local onde estão enterrados Ester e seu tio Mordechai, o herói central da narrativa.

Uma das mitzvot de Purim é ouvir a Meguilat Ester. Nas sinagogas tradicionais, a leitura é feita na noite em que se inicia a festa e no dia 14 de Adar. OUVIR – será mais que escutar? Leitura que na minha juventude era feita com uma coreografia própria. As pessoas fantasiadas, cada uma recebia um reco-reco, e toda a vez que o nome de Haman era mencionado fazia-se muito barulho. A ideia era impedir que o nome de Haman fosse escutado. A história versa sobre por que o rei, aconselhado por Haman, decide que os judeus da Pérsia deveriam ser eliminados. Ester, que se tornou rainha devido a uma desavença do rei com sua antecessora, a Rainha Vashti, incentivada por seu tio Mordechai faz com que o rei evite que o primeiro édito seja cumprido. Salvar o povo judeu de um holocausto é o mote principal.

No dia que antecede a festa é feito o Jejum Ester. Neste dia, a partir do nascer do sol até aparecer a primeira estrela, há restrição total a alimentos e bebidas. Ao aparecer a primeira estrela, um espírito carnavalesco supera a tristeza: danças, muita comida gostosa e bebida e também a obrigação de escutar a história de Purim transformam o cenário. Como esta é uma comemoração para todos, há o preceito (mitzvá) de dar aos mais necessitados dinheiro para que possam comprar comida – e este deve ser dado na base individual. Todos devem doar, mesmo aqueles que pouco têm. Assim, pouco importa a quantia, o que importa é que seja de pessoa para pessoa. O respeito pelo indivíduo e não pelo sua condição de necessitado.

Seguindo o mesmo espírito de uma refeição festiva e diversa, é um preceito dar presentes na forma de comida e bebida e participar de uma refeição festiva em família ou em comunidade.

Aprender, Cuidar, Presentear, Festejar... música, dança e fantasia – assim comemora-se a Festa de Purim (Pur – sorte em persa).

Mas quando paramos para realmente escutar a Meguilat Ester ouvimos uma história muito mais complexa. Um história que envolve duas mulheres muito bonitas, de personalidade, que personificam mulheres independentes, convivendo ou não em harmonia. Buscando caminhos que indicam a necessidade da afirmação da mulher. Vashti, a rainha que se rebela contra o domínio masculino e Ester, a menina que era submissa ao tio e depois ao rei e marido, mas que encontra formas próprias de a partir do presente contextualizar o passado e escrever o futuro.

As personalidades masculinas do Haman, Rei e Mordechai destacam a ambição, a liderança, a capacidade de lidar com adversidades. Mas esta não é apenas uma história de bons e maus. O lado do mal é evidente e baseado na premissa de fazer cumprir o supérfluo “todos os homens deveriam curvar-se e ajoelhar frente ao Primeiro Ministro Haman”. O lado do bem precisa de uma análise muito mais detalhada. No início, a Rainha Ester tem dúvidas sobre ser capaz de alterar o Édito do Rei. Há um momento em que encontra a forma como pode agir e o faz com habilidade. Saltando muitos detalhes, chegamos ao momento em que sem poder revogar um ato do rei, o próprio rei cria condições para que seu ato possa ser anulado por terceiros. Aqui surge um outro ponto interessante: por que a palavra dada não pode ser alterada futuramente? Por que o compromisso assumido não pode ser reavaliado em um outro contexto? Será que isso parece familiar, ou melhor, será que podemos aplicar nos dias de hoje?

Um dos pontos mais chocantes é que a forma de evitar o extermínio dos judeus foi dar a estes a possibilidade de lutar. Eles se defenderam e conseguiram ganhar o status de um povo entre os povos. A Pérsia na época de Xerxes era pluralista e formada por vários povos. 

TRANSFORMAR – repaginar, “retrofit”... todas palavras que remetem ao conceito de que, usando o que temos, avançamos para um outro contexto. Um contexto que possa inspirar um texto mais digno e mais inclusivo. Um contexto que premie a humanodiversidade.

Hoje penso que a festa de Purim nos transmite aquilo que nosso ser é capaz de compreender, e por isso, a cada ano, com muito barulho e movimento lemos o texto de acordo com o contexto!

Se tiverem oportunidade leiam alguns versículos deste rolo impressionante!
Alguns rabinos e pensadores costumam perguntar “onde estava D’us no momento em que houve a luta?” A resposta, muitas vezes, é que “a Face de D’us estava oculta”. Lendo a Meguilá (sem a letra “t” que faz as vezes da preposição “de” em português), atrevo-me a pensar que D’us está no texto que vai sendo transmitido ao longo das gerações por mais de 2 milênios!

Boa Semana!
Regina P. Markus

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