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quinta-feira, 7 de março de 2024

Iachad (juntos - יחד) - por André Naves: Choro: uma palavra feminina

 

Choro: uma palavra feminina

Há pouco eu falei da Bauhaus e de Walter Gropius. Lembram? Eu até usei uma fonte não serifada em homenagem aos princípios daquela escola de pensamento... a gente, inclusive, conversava como ela influenciou um grupo muito especial de arquitetos e urbanistas brasileiros...

Na verdade, enquanto suas ideias eram enxertadas nas mentes deles, esses também plantavam novas noções nos padrões estéticos dela... ou seja, o Brasil ia se aproximando da Bauhaus, mas, no caminho, ela ia se abrasileirando... pegando o cheiro da nossa gente, as cores da nossa terra, os traços que amamos...

Oscar Niemeyer, por exemplo. Um dos maiores, senão o maior, gênio da arte arquitetônica, bebeu das águas que jorravam daquele riacho chamado Bauhaus. Mas como um beija-flor, que ao se adocicar com a seiva da suculenta flor se veste com uma camada de pólen e passa a polinizar toda a plantação, ele também derramou o pólen da brasilidade na estética do grupo de Gropius...

Enquanto a turma europeia ainda era fissurada pelos traços retos, ele os ensinou a enxergar a beleza da curva: a sensualidade feminina da sinuosidade. A criatividade é uma mulher! A criação é feminina! O traço reto não pode violentar a beleza tão delas...

Dizem as melhores línguas que não há coincidências nesse mundão de meu deus! Niemeyer desenhou prédios por todo o Brasil e por todo o mundo, mas se deu bem mesmo com os projetos femininos...

A lagoa da Pampulha. A capital, Brasília. A sede da ONU... Mulheres! A Beleza, a Criação, a Mãe! 

E lá em Brasília ele tentou, ainda que simbolicamente, corrigir uma violência histórica cometida décadas antes pela desmemoriada modernidade.

Ao lado do Planetário de Brasília, no Eixo Monumental, Oscar colocou o Clube do Choro... o mais reluzente astro do universo musical tupiniquim, aquele que, saído do povo, derrama suas luzes sorridentes e floridas sobre toda a nação, estava lá... num trono urbanístico junto com estrelas, planetas, cometas...

A bem da verdade, quem colocou o clube lá foi o urbanista Lúcio Costa. Mas, é evidente que Niemeyer deu seus pitacos... é que não existe arquitetura isolada, sem entorno... arquitetura também é urbanismo e vice-versa!

O Choro voltava para o seu Trono!

É que ele também já tinha levado suas rasteiras... aliás, foi em nome da modernidade urbanística que essa tradição quase nos foi usurpada... dá pra imaginar nossa gente sem o Choro e o Samba?

No tempo em que o mar ainda banhava a capital do Brasil, em que as decisões eram tomadas no Catete sob as bençãos do Pão de Açúcar, as mais diversas pessoas jogavam suas ancoras nas terras fluminenses...

Rio de Janeiro: uma cidade da gente e do futuro!

Naquela época, os comuns, porém extraordinários, se cruzavam na praça Onze. Era lá que a pluralidade fermentava: judeus vindos da Europa, negros africanos, nordestinos, ciganos... 

A praça Onze era o território dos marginalizados trabalhadores onde morava a diversão, a musicalidade e a criatividade. Já repararam como um grupo de Choro se parece com um de Klezmer?

Quer outro exemplo? Ouça, por gentileza, “Vocalise”, do compositor russo Sergei Rachmaninoff. Agora ouça, por favor, o samba “As rosas não falam”, do precioso Cartola. Os gramofones trocavam ideias com as rodas de samba! 

Foi nesse jardim bem adubado que germinou o lirismo musical de Jacob do Bandolim. Sua mãe, a polaca Raquel Pick, lutava pelo apoio mútuo entre as prostitutas traficadas e pela dignidade na hora do sepultamento...

Dizem que ele morreu nos braços do seu grande amigo Pixinguinha... fala a verdade: esse abraço não é a cara do Brasil? 

Eu imagino que muita gente nunca havia enxergado essa parecença tão óbvia... é pra isso que servem as Artes: elas abrem os olhos e os ouvidos da Alma!

Mas nem tudo são flores...

Com asco da voz popular, o autoritarismo do asfalto, violento e ignorante, destruiu esse rubi histórico e democrático em nome de um futuro automobilístico... no seu lugar, os vermes cinzentos e cafonas.

É tão trágico esse deslembramento, não é? Povo desmemoriado ou autoridades da amnésia?

Pelo menos a gente sempre vai saber... quem tentou destruir a praça Onze, a Criatividade, a Democracia, a Beleza e a Tradição foi a soberba virulenta de quem nunca enxergou as trovas populares...

E quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir continuará escutando a doçura lírica da praça!

André Naves

Defensor Público Federal, especialista em Direitos Humanos, Inclusão Social e Economia Política. Escritor e Comendador Cultural.


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