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quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

‘Mitzvá Legal’ - Respeito à Dignidade da Mulher Cativa

Respeito à Dignidade da Mulher Cativa


Por Angelina Mariz de Oliveira


A grande maioria das mulheres é fisiologicamente mais fraca do que os homens, uma condição decorrente das diferenças hormonais, originadas de suas origens cromossômicas. Em quase todas as culturas essa diferença é, ou já foi, vista como indicativo de subalternidade, inferioridade, incapacidade. É uma condição usada como justificativa para a exigência de submissão da mulher às determinações do pai, do irmão, do marido, de familiares e autoridades masculinos.

Em uma situação de conflitos armados, a captura das mulheres do grupo derrotado por homens do grupo vencedor é visto como um sinal de força, um troféu, até mesmo representa enriquecimento. Além disso, a violência sexual é historicamente uma arma de humilhação e dominação. Essa situação é atual e corriqueira em conflitos urbanos, em atentados terroristas, em guerras convencionais. Essa ‘tradição’ inclusive é vista como sinal de virilidade pelas mulheres do grupo vencedor.

É flagrante que a sujeição cruel e violenta de mulheres cativas não confere a essas pessoas o respeito à sua dignidade humana. O tratamento de seres humanos como objetos, a tortura, a escravidão, a morte brutal... parecem inconciliáveis com valores tradicionais religiosos, morais e éticos. Há milhares de anos a humanidade vem lidando com essa tragédia cultural através de leis específicas regulando o tratamento que deve ser dado às mulheres capturadas e criminalizando os atos de violência.

Na Torá, quando os hebreus se tornam um povo - os filhos de Israel - e organizam um exército, recebem mandamentos claros em relação às mulheres cativas. Lemos na parashá Ki Tetzê (Devarim-Deuteronômio 21:11-14).

- proibição de violência sexual;

- a cativa deve ser levada para a casa do guerreiro;

- dever de deixar a cativa chorar pela família perdida durante um mês;

- após esse período, se o captor israelita mantiver o desejo pela cativa, ela terá todos os direitos de esposa;

- se depois de um mês o israelita não desejar mais a cativa, ele não pode vendê-la, nem a escravizar, nem a tratar como serva ou mercadoria, devendo deixar a mulher livre, pois ela foi humilhada.

O adjetivo bíblico dado para a mulher cativa desejada pelo guerreiro israelita é de ser ‘formosa à vista’ – ‘iefat toar’. Essa expressão aparece também como qualidade de Raquel, esposa de Jacó (Bereshit-Gênesis 29:17); bem como de Esther que seria rainha de Achashverosh (Esther 2:7). Essa equiparação é importante para demonstrar que a ‘mulher formosa’ não é responsável pelo abuso violento do homem, já que é uma qualidade positiva, compartilhada com duas personalidades judaicas essenciais: aquela que foi o grande amor de Jacó e mãe de duas tribos; e a rainha que salvou o povo judeu de um decreto de extermínio.

Sobre essa expressão, ‘formosa à vista’, no começo da Era Comum o Talmude ensina que o mandamento sobre a cativa de guerra se aplica mesmo que a prisioneira “não seja tão bonita, já que este é um julgamento subjetivo, dependendo do desejo” do soldado (Kedushim 22a). Neste Tratado também é afirmado que os mandamentos sobre a prisioneira de guerra “ensinam que ele (o israelita) não deveria pressionar ela (a mulher cativa) a ter relação sexual durante a guerra, mas ele deveria primeiro levá-la para dentro de sua casa”. E ainda afirma que cada guerreiro judeu só poderia levar uma única cativa, nenhuma a mais, nem outra cativa para ser entregue ao pai do guerreiro.

Rashi, na Idade Média (França, 1040-1105) explica que a punição ao guerreiro judeu que descumprir esses mandamentos seria ser obrigado a conviver com uma esposa em uma relação de ódio, que iria gerar “um filho desencaminhado e rebelde”. Sua conclusão decorre da análise conjunta dos versículos 11 a 14, e 15 a 21, do Capítulo 21 de Devarim-Deuteronômio.

Mais de três mil anos depois do recebimento da Torá ainda se procura modificar a cultura de violência contra a mulher, especialmente durante as guerras. São milhares os exemplos de textos normativos e legais sobre essa questão ao longo dos séculos.

Após a tragédia da Segunda Guerra Mundial, a maior parte das nações se comprometeu com a Convenção de Genebra, de 12 de agosto de 1949, que estipula em seu Artigo 27:

Mulheres devem ser especialmente protegidas contra qualquer ataque a sua honra, em particular contra estupro, prostituição forçada ou qualquer forma de investida indecente”.

Em 9 de junho de 1994 a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) expediu a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – “Convenção de Belém do Pará”. Seu Artigo 2 estabelece os seguintes parâmetros:

Entendese que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica:

a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindose, entre outras formas, o estupro, maustratos e abuso sexual;

b. ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e

c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra”.

Apesar do longo histórico legislativo sobre a proibição de uso de violência sexual contra mulheres, em especial em conflitos, a questão continua muito preocupante no Século XX. O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Resolução 1325 sobre Mulheres, Paz e Segurança, em 31 de outubro de 2000, onde encontramos a seguinte invocação:

Apela a todas as partes envolvidas em conflito armado para que tomem medidas especiais de proteção das mulheres e das jovens contra a violência baseada na diferença de gênero, em particular a violação e outras formas de abuso sexual, bem como todas as outras formas de violência que ocorrem em situações de conflito armado”.

No entanto, os conflitos recentes demonstram que a violência contra mulheres e meninas é uma importante arma para subjugar outros grupos sociais. A violência sexual deixa marcas físicas e psicológicas traumáticas, e a mensagem de que uso da força contra pessoas capturadas seria por si só uma vitória dos agressores.

Apesar de tantas normas, leis e penalidades, o fato é que em poucas sociedades o soldado é treinado para conter seus impulsos violentos excessivos. Poucos exércitos realmente punem os atos de violência praticados por sua tropa contra inimigos capturados e aprisionados.

Em 7 de outubro de 2023 os homens do Hamas mais uma vez demonstraram o abuso de seu poder contra pessoas atacadas e subjugadas. Com o novo agravante de as violências sexuais e outras barbaridades terem sido filmadas e divulgadas em rede social mundial, como um filme de ação.

Vivemos um momento em que a violência contra mulheres e meninas nos conflitos é divulgada e enaltecida, inspira muitas pessoas a agirem da mesma forma, criando um tenebroso e perigoso ciclo de decadência humana. São estratégias de destruição, que nem levam à criação de sociedades fortes e saudáveis.

E as leis? Nenhuma lei penal existe espontaneamente, as leis são criações políticas humanas; para elas serem eficazes é necessário que as pessoas as façam ser cumpridas. É como o projeto de construção de uma escola: não basta a planta arquitetônica e o projeto de engenharia, é preciso que as pessoas construam a escola, e que depois o local seja usado para compartilhar conhecimento.

Os Estados e organizações comunitárias demonstram que têm grandes dificuldades em garantir segurança às meninas e mulheres submetidas durante conflitos. Presenciamos mesmo a omissão de importantes organismos internacionais, em um silêncio aterrorizador. E os Estados e grupos que praticam a barbaridade, incluindo a violência sexual contra seus prisioneiros, continuam a agir impunes.

Para isso mudar é preciso que cada um de nós se manifeste explicitamente, com coragem e vigor, clamando pelo cumprimento das leis, exigindo que as autoridades e instituições internacionais cumpram suas funções. Falar dessa questão com outras pessoas também é relevante na ‘construção desse edifício de respeito à dignidade de meninas e mulheres’. A educação, a conscientização de cada ser humano é essencial para combater o enaltecimento e propagação da violência sexual contra o ser humano capturado, seja mulher ou seja homem, independente de sua orientação sexual.

 

 

  

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