Por Guilherme Susteras
Hoje começamos a ler o último livro da Torá, Devarim. É o momento em que Moshé, já no fim da vida, reúne o povo e deixa suas últimas palavras. E essas palavras não são apenas leis: são um testamento espiritual, um convite para lembrar, entender e escolher.
Devarim significa “palavras”, e o
livro inteiro é, de fato, um grande discurso. A tradição diz que Moshé falou ao
povo por 36 dias — os últimos 36 de sua vida — repetindo e explicando as leis
da Torá para que não houvesse dúvidas, para que todos entendessem, cada um na
sua língua e no seu coração.
Nas palavras do Rabino Jonathan Sacks z”l,
com Devarim, todo o projeto bíblico se torna claro e atinge seu clímax. É o
último ato antes do povo entrar na terra prometida. E, mais do que isso, é o
momento em que a Torá deixa de ser apenas a vontade de Deus e passa a se
enraizar na memória coletiva do povo. Moshé lembra aos israelitas: vocês foram
escravos. Vocês sabem o que é viver sem direitos, sem descanso, sem dignidade,
sem esperança. Lembrem-se disso, porque é dessa memória que nasce a lei
judaica.
Esse livro também nos diz muito sobre o que
o Judaísmo não é.
Ao contrário do Cristianismo, Judaísmo não
é uma religião do pecado original: a Torá nunca disse que herdamos a culpa de
Adão e Eva. Somos responsáveis por nossos atos — e só por eles.
Também ao contrário do Islã, que significa
“submissão”, Judaísmo não é uma religião de obediência cega. No Judaísmo não
existe sequer uma palavra para “submissão” ou “rendição”. O verbo mais próximo,
shema, significa ouvir, escutar, esforçar-se para compreender — e só
então responder com ação.
Mas talvez seja mais importante do que
dizer o que o Judaísmo não é… dizer o que ele é. Ou melhor: o que ele é para
mim.
Sou judeu por herança, por escolha e por
compromisso.
Eu carrego comigo os ecos de gerações que
celebraram, resistiram, reconstruíram. E sigo adiante com a consciência de que
o Judaísmo é, acima de tudo, um caminho vivo.
Acredito que o Judaísmo é uma tradição em
constante transformação: uma herança cultural, espiritual e ética que pertence
a todas as gerações — mas que precisa ser recriada em cada tempo, com liberdade
e com responsabilidade.
Vejo a Torá como um testemunho humano da
busca por sentido, justiça e conexão. Para mim, ela é sagrada não por ter vindo
diretamente de Deus, mas porque veio do coração do nosso povo — e foi amada,
estudada e debatida por séculos.
Minha prática não se ancora no “dever”
haláchico, mas no significado. Acendo as velas do Shabat, não por obrigação,
mas porque o ritual me conecta com a memória, com a pausa, com a esperança.
Jejuo em Yom Kipur porque preciso parar e me perguntar se estou sendo fiel ao
que acredito. Celebro as festas, estudo os textos, canto as melodias — não para
repetir o passado, mas para dialogar com ele.
Creio que Deus — para quem crê — pode ser
uma fonte de inspiração, mas que a ética independe da fé. Se existe santidade,
ela se manifesta nas relações humanas justas, na escuta atenta, na luta por
dignidade e compaixão.
O coração do meu Judaísmo está no tikkun
olam: no esforço de consertar o que está quebrado, de resistir à
indiferença, de afirmar a vida onde houver dor.
Minha comunidade é feita de iguais: homens,
mulheres, pessoas trans, pessoas não-binárias, judeus de nascimento e judeus
por escolha, famílias diversas. Todos com lugar. Todos com voz.
Sou parte de um povo. Amo o povo judeu com
lucidez, e apoio Israel com consciência crítica. Meu vínculo com a terra e com
o sonho de uma sociedade justa ali não me impede de denunciar injustiças —
porque amar também é exigir coerência.
Meu Judaísmo é uma escolha diária: de
lembrar, de celebrar, de lutar, de pertencer.
Não o vivo por medo, nem por costume — mas por amor, por sentido, por
convicção.
E é justamente com vocês, nesta comunidade,
que consigo expressar esse Judaísmo em sua plenitude.
Assim como Moshé reuniu o povo para seu
discurso, nós também nos reunimos hoje para ouvir e falar, para lembrar e para
escolher. E a minha escolha é viver o Judaísmo por amor, por sentido e por
convicção — e compartilhá-lo com vocês.
Shabat Shalom.
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