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sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Prédica – Kabbalat Shabat – Parashá Devarim

 

Por Guilherme Susteras


Hoje começamos a ler o último livro da Torá, Devarim. É o momento em que Moshé, já no fim da vida, reúne o povo e deixa suas últimas palavras. E essas palavras não são apenas leis: são um testamento espiritual, um convite para lembrar, entender e escolher.

Devarim significa “palavras”, e o livro inteiro é, de fato, um grande discurso. A tradição diz que Moshé falou ao povo por 36 dias — os últimos 36 de sua vida — repetindo e explicando as leis da Torá para que não houvesse dúvidas, para que todos entendessem, cada um na sua língua e no seu coração.

Nas palavras do Rabino Jonathan Sacks z”l, com Devarim, todo o projeto bíblico se torna claro e atinge seu clímax. É o último ato antes do povo entrar na terra prometida. E, mais do que isso, é o momento em que a Torá deixa de ser apenas a vontade de Deus e passa a se enraizar na memória coletiva do povo. Moshé lembra aos israelitas: vocês foram escravos. Vocês sabem o que é viver sem direitos, sem descanso, sem dignidade, sem esperança. Lembrem-se disso, porque é dessa memória que nasce a lei judaica.

Esse livro também nos diz muito sobre o que o Judaísmo não é.

Ao contrário do Cristianismo, Judaísmo não é uma religião do pecado original: a Torá nunca disse que herdamos a culpa de Adão e Eva. Somos responsáveis por nossos atos — e só por eles.

Também ao contrário do Islã, que significa “submissão”, Judaísmo não é uma religião de obediência cega. No Judaísmo não existe sequer uma palavra para “submissão” ou “rendição”. O verbo mais próximo, shema, significa ouvir, escutar, esforçar-se para compreender — e só então responder com ação.

Mas talvez seja mais importante do que dizer o que o Judaísmo não é… dizer o que ele é. Ou melhor: o que ele é para mim.

Sou judeu por herança, por escolha e por compromisso.

Eu carrego comigo os ecos de gerações que celebraram, resistiram, reconstruíram. E sigo adiante com a consciência de que o Judaísmo é, acima de tudo, um caminho vivo.

Acredito que o Judaísmo é uma tradição em constante transformação: uma herança cultural, espiritual e ética que pertence a todas as gerações — mas que precisa ser recriada em cada tempo, com liberdade e com responsabilidade.

Vejo a Torá como um testemunho humano da busca por sentido, justiça e conexão. Para mim, ela é sagrada não por ter vindo diretamente de Deus, mas porque veio do coração do nosso povo — e foi amada, estudada e debatida por séculos.

Minha prática não se ancora no “dever” haláchico, mas no significado. Acendo as velas do Shabat, não por obrigação, mas porque o ritual me conecta com a memória, com a pausa, com a esperança. Jejuo em Yom Kipur porque preciso parar e me perguntar se estou sendo fiel ao que acredito. Celebro as festas, estudo os textos, canto as melodias — não para repetir o passado, mas para dialogar com ele.

Creio que Deus — para quem crê — pode ser uma fonte de inspiração, mas que a ética independe da fé. Se existe santidade, ela se manifesta nas relações humanas justas, na escuta atenta, na luta por dignidade e compaixão.

O coração do meu Judaísmo está no tikkun olam: no esforço de consertar o que está quebrado, de resistir à indiferença, de afirmar a vida onde houver dor.

Minha comunidade é feita de iguais: homens, mulheres, pessoas trans, pessoas não-binárias, judeus de nascimento e judeus por escolha, famílias diversas. Todos com lugar. Todos com voz.

Sou parte de um povo. Amo o povo judeu com lucidez, e apoio Israel com consciência crítica. Meu vínculo com a terra e com o sonho de uma sociedade justa ali não me impede de denunciar injustiças — porque amar também é exigir coerência.

Meu Judaísmo é uma escolha diária: de lembrar, de celebrar, de lutar, de pertencer.
Não o vivo por medo, nem por costume — mas por amor, por sentido, por convicção.

E é justamente com vocês, nesta comunidade, que consigo expressar esse Judaísmo em sua plenitude.

Assim como Moshé reuniu o povo para seu discurso, nós também nos reunimos hoje para ouvir e falar, para lembrar e para escolher. E a minha escolha é viver o Judaísmo por amor, por sentido e por convicção — e compartilhá-lo com vocês.


Shabat Shalom.

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