FAUDA – rupturas de
identidades como portas para novos caminhos.
Por Bruno Szlak –
Doutor em Estudos Judaicos pela FFLCH USP
Criada por Avi Issacharoff e Lior Raz
em 2015, Fauda é uma série de ação contemporânea israelense que retrata uma
unidade disfarçada do Serviço Interno de Segurança (Shabak) israelense. Seus
membros tornam-se Mist’aravim (aqueles que se tornam árabes, em hebraico) para
se misturar no meio da população local palestina e efetuar operações
anti-terror. Fauda tornou-se imediatamente um grande sucesso em Israel e ao ser
comprada pela Netflix tornou-se um sucesso mundial, inclusive nos países
árabes. Atualmente, a série está em sua 4ª. temporada e aparentemente haverá
uma 5ª.
Fauda apropria-se de traumas que
assombram a sociedade israelense, não apenas derivados de eventos passados
(como o Holocausto, guerras e atentados terroristas), mas também de traumas que
“voltam do futuro” para destruir a unidade nacional e a própria existência de
Israel. Falando sobre os ataques de 11 de setembro em Nova York, o filósofo
Jacques Derrida (2003) coloca: “nós estamos falando de um trauma, e assim, um
evento, cuja temporalidade advém nem do agora que está presente e nem do
presente que é passado, mas de um “não presente” que está por vir.” Já Thomas
Elsaesser (2014), que é historiador de cinema descreve como atos de terror e
matança são consequências de atos de terror anteriores que geram atos de
matança que os seguem. Este loop cria traumas que não podem
ser trabalhados através do luto, na medida em que suas fontes estão não apenas
nos eventos passados, mas no medo de eventos que possam acontecer. Assim,
“trauma não é mais a tentativa de recuperar e reconstruir o passado, mas uma
maneira de ser detida em uma espera antecipatória.” Isto forma uma cadeia sem
fim de traumas de onde não há saída, no passado, no presente e no futuro. Na
medida em que Fauda (caos em árabe) trata de proteger a nação de futuros
ataques terroristas, isso manifesta a temporalidade do trauma futuro sentido no
presente. Nesse sentido, a série embaralha a ordem dos eventos, tanto pela
estrutura da série, bem como ela ser construída em eventos repetidos cuja fonte
do trauma reside não no passado, mas num futuro conjecturado. Em outras
palavras, é estruturada em um tipo diferente de temporalidade.
Com relação às personagens de Fauda, o
filósofo político Giorgio Agamber fala de um fenômeno chamado de “estado de
exceção”, onde o indivíduo é ao mesmo tempo contido e abandonado pela
legalidade. Neste estado de exceção, que é considerado um estado de emergência,
as vidas dos sujeitos numa democracia são legalmente abandonadas e tornam-se o
que ele chama de “vida nua”. Ao realizar ações que são consagradas pela lei, os
agentes em Fauda agem em contradição a essa mesma lei, e desta forma removem-se
dela. Ao fazê-lo, acabam por falhar em suas ações, ferindo pessoas inocentes e
traindo os valores em que acreditam e nos quais suas ações são baseadas.
Consequentemente, a unidade a que pertencem acaba por ser quebrada e as
próprias personagens acabam por se quebrar internamente. O projeto espacial da
série demonstra e reflete bastante bem essa situação de viver uma “vida nua”.
As vizinhanças por onde os protagonistas se movem e onde são filmados por
câmeras que mostram os seus pontos de vista, são lugares sem possíveis saídas.
Vezes e vezes eles andam por corredores sem fim em escritórios, hospitais,
túneis, becos sem saída e ruas fechadas, em longas e contínuas tomadas e que
por fim encontram espaços abandonados, escritórios vazios, nichos e depósitos
cheios de sujeira e objetos sem uso. Os protagonistas em Fauda são heróis sem
um lar, são heróis sem futuro, sem vida familiar e sem um lar nacional. Os
coletivos a que pertencem se quebraram e eles vagueiam sem objetivo, sem
escapatória, nunca chegando em lugar nenhum. No mesmo espaço, as personagens
árabes também vagueiam. Este é o espaço real e metafórico de Fauda.
Assim como os filmes israelenses que a
precederam, Fauda retrata paralelos entre duas tramas – aquela que acontece no
lado israelense e aquela que acontece no lado palestino. Essas tramas paralelas
testemunham os grandes paralelos nestas duas sociedades: a mesma luta entre
lealdades com a família e com a nação; a mesma impossibilidade de viver em
ambas as comunidades; a mesma escolha sobre envolver-se em violência como
vingança por atos de violência e a mesma existência sobre quem está incluído na
legalidade e que é empurrado para fora dela. Doron (Lior Raz) acaba por se
afastar de sua família, da mesma forma Amal e Abu-Ahmad (na 2ª. temporada).
Ainda Doron e Abu-Ahmad são expelidos de suas unidades. Ao criar analogias
entre o lado judaico e o lado árabe, a série continua uma tendência que dominou
os filmes israelenses que tratam do conflito israelo-palestino.
No entanto, Fauda não apenas ilustra os
paralelos entre duas nações; mais, ela constrói um cenário de mudanças
continuas nas identidades nacionais e sociais, incorporando e desmantelando
todos os meios que filmes anteriores utilizaram para abrir caminhos entre as
pessoas e dentro disso, o uso de paralelos. Em contraste com filmes do cinema
sionista embrionário e com os filmes do gênero heroico-nacionalista pós 1948,
que definiam os heróis israelenses frente aos exóticos e ameaçadores “outros”
árabes, o cinema político dos anos 1980 – exemplificado em filmes com Hamsin
(Wachsmann, 1982), Beyond the Walls (Barabash, 1984), On a Narrow Bridge
(Dayan, 1985), Avanti Popollo (Bukai, 1986) entre outros, misturou árabes e
judeus através de diferentes meios. Isso incluiu criar paralelos e apresentar a
similaridade entre os dois povos, desenvolvendo um processo em que ambos os
lados se aproximam, criando amizades ou interesses amorosos, trocando papéis
entre os protagonistas dos dois lados ou encontrando um caminho comum para o
mesmo objetivo. Ao final, os filmes dos anos 1980 não desmontaram o conflito
entre árabes e judeus. Ao invés disso, criaram o árabe à imagem do judeu, de
forma que o árabe aparece como o judeu, corporificando em sua história o
sofrimento judaico, rememorando os judeus de seus valores sionistas e expondo
os mesmos pontos de fricção experimentados pelos judeus. Assim, a figura do
árabe é subvertida sob a identidade hegemônica e homogênea dos judeus, ainda
que não ganhe subjetividade independente.
Em contraste, Fauda não apresenta
nenhum processo onde os dois lados se aproximam. Não há distanciamento entre
eles que termine em relacionamento, não há avanço em objetivos comuns. Todos os
episódios identificam-se com ambos os lados, existindo dentro da comunidade
nacional assim como fora dela e retratando a vida dentro da família e dentro
das unidades de combate. Nenhuma dessas posições substitui as outras, ao invés
disso, elas sobrepõem-se umas às outras.
O objetivo aparente de Fauda é o de
retratar o heroísmo dos agentes disfarçados, suas vidas, seus dilemas e seus
problemas. Mas na realidade faz muito mais do que isso. A série examina
criticamente a própria possibilidade de uma identidade israelense que seja
pura, homogênea, inteira e unificada e que se proteja e se defina contra o
'outro', o inimigo palestino. Na medida em que a série avança, fica evidente
que esta identidade pura, que incorpora os valores e as leis em que os
protagonistas acreditam e em nome dos quais agem, não tem futuro e não é
sustentável. Desde o início, esta versão da identidade judaico-israelense é
baseada tanto na exclusão dos incluídos quanto no conflito com os que estão de
fora. Em última análise, ele se decompõe nas identidades infinitas encontradas
em uma "guerra civil" em andamento, dividindo-se repetidamente. No
entanto, por meio de sua retórica televisiva, a série de fato sugere que a
ruptura da identidade pode ser a base para uma outra existência para o
indivíduo que não é assimilado ao resto da sociedade, mas mantém sua
independência e a opção de transitar entre diferentes comunidades e, assim,
expressar as várias facetas de sua complexa identidade.
Embora as várias possibilidades existam
lado a lado simultaneamente, elas também estão em constante movimento, às vezes
se alternando ou se fundindo, às vezes se chocando. A câmera é a força que guia
esses movimentos ao percorrer os personagens, mudando ângulos, pontos de vista
e distâncias, levando consigo o espectador. O telespectador é um participante
desta viagem, perambulando entre os vários protagonistas e perspectivas. A
câmera não permite que ele se identifique completamente com nenhum deles, nem
mostra quem teme quem, quem deseja quem, ou quem sonha com o quê, como se fazia
no cinema israelense do passado. Assim, como os protagonistas, o espectador não
permanece em uma posição fixa, mas se move entre o singular e o plural e entre
os vários campos, sempre em movimento, experimentando proximidade ou distância,
mudando constantemente de posições e identidades.
Para finalizar, creio que Fauda é um
sucesso mundial porque alia as ambiguidades que todos nós vivemos em nossas
sociedades, como indivíduos complexos vivendo num mundo que apresenta múltiplas
identidades que se trocam todo o tempo e oferece ao mesmo tempo um
entretenimento de alto padrão em uma produção impecável nos detalhes e no
desenvolvimento.
Artigo baseado em Trauma, Time and the
“Singular Plural”: The Israeli Television Series Fauda – Nurith Gertz e Raz
Iosef
Parabéns pela primorosa e excelente análise!
ResponderExcluirSérie maravilhosa, espero que lancem uma 5ª temporada. A série é tão boa e realista que até árabes elogiam o enredo.
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