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quinta-feira, 13 de julho de 2023

CINEMA - Por Bruno Szlak: Corpos em movimento

 



CORPOS EM MOVIMENTO: O CINEMA HAREDI

Por Bruno Szlak

 

A sequência de filmes de Yehuda Grovais, conhecida como a Vingança Judaica (Hanekama HaYehudit) começa em 2000, com um filme cujo título dará nome à série e foi um dos primeiros filmes de ação no mercado ortodoxo. Tendo sido muito bem aceito pelas audiências jovens masculinas, a fórmula foi rapidamente repetida por Grovais, que produz uma sequência com 4 filmes: A Vingança Judaica 2 – a captura de Eichmann; A Vingança Judaica 3 – missão no Nepal; A Vingança Judaica 4 – o arquivo secreto; A Vingança Judaica 5 – me tirem de minha prisão pessoal. Ao longo dos anos seguintes muitos filmes do mesmo gênero foram produzidos por Grovais e por outros cineastas. Estes filmes representam um fenômeno da primeira década do século XXI na produção de filmes por e para o público ultra-ortodoxo.

 

Ainda que muito populares no público jovem haredi (ultra-ortodoxo judeu), os filmes da série A Vingança Judaica nunca receberam a aprovação formal das autoridades rabínicas. Ao contrário, sua popularidade despertou muita controvérsia e provocou a produção de muitos panfletos de protesto. O processo de negociação gradual para a aceitação dos filmes pelo público ortodoxo e pelas autoridades rabínicas significa que os filmes são defendidos inicialmente e principalmente como ferramentas educacionais. Para que o filme possa ser acolhido pela autoridade rabínica, sua trama deve reafirmar positivamente formas consensuais de comportamento. Ainda que os filmes ortodoxos não possam ser vistos simplesmente como propaganda dos discursos ortodoxos oficiais, suas narrativas evitam tratar diretamente de pontos sociais e ideológicos que possam ser entendidos como controversos seja entre grupos de diferentes denominações ortodoxas ou em assuntos como a relação com o serviço militar obrigatório, por exemplo. O status controverso, dentro do próprio universo ortodoxo de séries como A Vingança Judaica, pode ser atribuído então a uma certa transgressão e desafio ao discurso ortodoxo oficial através da experimentação na linguagem fílmica (pelo menos no universo ortodoxo), pelo gênero de ação proposto e ainda pelo endereçamento temático da relação dos ortodoxos com o Sionismo e com as Forças Armadas.

 

A apropriação do gênero de ação pelo cinema ortodoxo está longe de ser considerada trivial. No ponto de encontro entre o mundo ortodoxo e as convenções do cinema hollywoodiano, a apropriação do gênero engendra uma gama de significados e abre espaços para limiaridades e transgressão. Conforme Harvey O’Brien (2012), as narrativas dos filmes de ação apresentam tipicamente histórias redentoras de heroísmo, asseverando a masculinidade, onde protagonistas ativos superam obstáculos numa jornada de resoluções pessoais e sociais. Embora não seja simples definir o gênero de ação, há de se concordar que uma de suas características é uma ênfase no corpo e na propensão para a ação física espetacular. Daí a tendência para se incluir nesse tipo de filmes cenas de perseguições, brigas, tiros, explosões, personagens atléticos e cada vez mais, efeitos especiais ou animações. De acordo com Lisa Purse (2011, p. 3), o cinema de ação é precisamente definido pelo seu foco no corpo em movimento, assim: “o corpo é um corpo fisicamente empoderado, forte, ágil e resiliente, provando a si mesmo no campo da ação e risco, e dessa maneira desempenha fantasias de empoderamento que são inerentemente declaradas e atuadas, mais do que abstraídas.”

 

Para Richard Slotkin (1992, p.8), as noções de masculinidade ocidentais estão normalmente centradas na apresentação do corpo em ação e são assim apresentadas nos filmes de ação, associando o poder entre força mental, o material e o corporal. As narrativas nos filmes de ação hollywoodianos normalmente calcam-se em histórias de heroísmo e superação ligadas à mitologia americana e a cristandade, invocando regeneração e superação através da violência e de sacrifício pessoal.

 

Essas noções de masculinidade estão em diametral oposição às noções de masculinidade e heroísmo masculino do mundo ortodoxo. O modelo ortodoxo idealizado de masculinidade conecta a oposição binária entre passividade/ação com o da espiritualidade/materialidade. Conforme Topel, em seu trabalho A Ortodoxia Judaica e seus Descontentes (2011, p. 160): “Os homens ortodoxos se orgulham do corpo “delicado” e de que suas mãos revelam não ter se dedicado a trabalhos físicos. O uso de óculos também forma parte inseparável do corpo ortodoxo masculino. Finalmente, o corpo de homens e mulheres, geralmente muito pálido, indica a falta de costume de expô-lo ao sol, o que aponta a alienação da natureza e ao mesmo tempo, o respeito às regras de recato que obrigam cobrir quase que totalmente o corpo dos judeus observantes.”

 

O crescimento demográfico e de poder político da sociedade Haredi nos últimos 30 anos foi acompanhado por um crescente sentimento de confiança por parte dessa comunidade, abalada, desde meados do século XX, tanto pelo Holocausto europeu como pela supremacia

do sionismo laico. Somada a esse sentimento de confiança, a exposição de muitos homens haredim da redoma fechada e protegida do espaço ortodoxo à sociedade israelense maior os colocou em competição com novos modelos masculinos, apesar da desaprovação das

autoridades rabínicas, que tentam preservar uma percepção de vida que enxerga o Estado de Israel laico como um “exílio espiritual”. No discurso oficial dos rabinos, a única forma de

ação que poderia terminar com esse estado de “exílio espiritual” seria a ação religiosa, ou

seja, mais estudos da Torá e maior comprometimento com o cumprimento dos preceitos

religiosos (mitzvot).

 

Assim, crescentes incidentes de protestos políticos entre os haredim, incluindo sinais de violência física e verbal – evidência de que alguns jovens haredim queiram se juntar ao exército e se engajar na guinada política da sociedade israelense em direção à direita –, têm uma dimensão relacionada ao próprio corpo. De fato, “ao adotar tal estilo e ideologia mais rudes, os haredim manifestam seu desejo de possuir um corpo. Parece ser essa uma expressão subliminar de sua fascinação com as coisas que foram longamente pensadas serem território dos sionistas, e da qual os ultraortodoxos foram privados: fisicalidade, masculinidade e busca por ação” (ARAN; BEM-ARI; STADLER, 2008, p. 25).

 

Adotando certas características do gênero, os filmes de ação haredim incluem cenas de intensa ação física, como perseguições, brigas e tiroteios. Isso é geralmente sublinhado pelo gênero do Western, com música em ritmo acelerado, relacionando o filme com o gênero popular. A retratação da violência e do corpo masculino emula as convenções hollywoodianas

da era clássica, distanciando-se imensamente da violência hiper-realista e sangrenta, do uso intenso de efeitos especiais e da montagem truncada que caracterizam as produções atuais do gênero. Embora tais procedimentos possam parecer arcaicos e, por vezes, mostrar certa falta de suspense, esse não é o caso para o público-alvo, pouco exposto às produções hollywoodianas. No caso da série Jewish revenge, a experiência visual do cinema de ação alude não apenas ao desejo dos espectadores haredim de possuir um corpo, mas a um desejo de corporificar uma posição mais ativa na mitologia nacional israelense. Ao fornecer um produto “nacional” e “kasher”, que, de certa maneira, atendem aos anseios do público jovem haredi, Grovais posiciona suas tramas dentro de temas contemporâneos e históricos da esfera do sionismo militante, evocando, com plena seriedade, tropos da mitologia sionista que, havia muito, tinham sido abandonados pelo cinema israelense contemporâneo. Os cinco filmes da série compartilham argumentos e estruturas narrativas clássicas similares. Trata-se de narrativas que remetem a missões nacionais, como, por exemplo, a captura de Adolf Eichmann, na Argentina, pelo Mossad – evento que poderia ser enxergado como uma das maneiras pelas quais o jovem Estado Sionista afirmava sua capacidade de buscar seus inimigos onde quer que estivessem, transformando-se no braço vingador de todo o povo judeu. No centro das narrativas, homens seculares israelenses encontram-se com homens haredim em ambientes de homens não judeus e hostis. Com raríssimas exceções, esses homens não judeus são apresentados como personagens unidimensionais e retratados estereotipicamente como não confiáveis – por vezes, maus e, em outras ocasiões, inadequados ou estúpidos. Sua única função na trama é fornecer o background para um relacionamento muito mais significativo que se revela: o do agente do Mossad com a personagem haredi. O encontro significativo vai além dos retratos estereotipados do israelense no discurso haredi. Visto que, em muitos enclaves religiosos, a sociedade haredi está sob constante ameaça de defecção de seus membros, o discurso prevalente posiciona o israelense secular como o mal que está fora, contra quem a identidade interna e esclarecida do haredi é construída. A imagem estereotipada do israelense secular como símbolo do mal é mantida pela noção de que qualquer contato com o corpo israelense deve ser limitado ou evitado totalmente. No texto de Friedman e Hakak (2015, p. 13), é citada a análise de Vered Elimelech sobre o cinema haredi:

 

“[...] Vered Elimelech demonstrou que o encontro com o outro – o não judeu ou o judeu secular – é central em muitos filmes haredim. Meramente por expor a imagem do outro ao público haredi, o cinema Haredi já se desvia do discurso dominante  Fazendo uma distinção entre a “primeira geração” de produções haredim (2000-2003) e a segunda geração de filmes (2003-2010), Elimelech aponta uma mudança na construção do Outro. Nos primeiros filmes, o Outro – seja secular israelense ou não-judeu – é mostrado como uma personagem unidimensional, usualmente desprovido de faculdades espirituais e intelectuais, cujas funções principais na narrativa são a de atuar como uma antítese ao herói haredi. Em alguns dos últimos filmes, as personagens não-haredim são mais nuançados. Enquanto que, em última instância, sua função seja a de reforçar o conjunto de valores haredim, a narrativa expõe suas considerações e motivações e ao fazê-lo, os privilegia e transgrede o discurso hegemônico. (2015, p. 13)”.

 

Na série Jewish Revenge, o israelense secular é um agente da história. A trama se desenrola ao seu redor, e o ponto de vista dos espectadores é normalmente alinhado com o dele, de forma que o conflito dramático no coração da trama é motivado por sua história. É apenas no ponto da crise, quando ele está diante de obstáculos crescentes, prestes a completar a sua missão, que o herói israelense encontra o herói haredi. Duas coisas importantes acontecem durante o encontro entre as duas personagens principais dos filmes: a primeira é que o herói haredi deixa o espaço protegido de sua comunidade e seu trabalho espiritual e se envolve, física e mentalmente, em assuntos do Estado secular. Inicialmente relutante, ele prova-se central para o sucesso da missão, na qual o corpo haredi é também engajado. O herói haredi é visto também participando em perseguições, ocultando e descobrindo documentos e até confrontando fisicamente os não judeus. Em segundo lugar, ao se envolver com a missão nacional, o herói haredi facilita a transformação da visão global do judeu secular, explicando-lhe a verdadeira natureza da vingança judaica. Mais do que combates físicos e retaliações, a

verdadeira vingança judaica é guiada pelo trabalho espiritual de Deus e a continuidade da vida tradicional judaica. Essa transformação, sendo revelada ao judeu secular, desfaz o conflito no coração da trama e leva à resolução. A missão é completada, apesar de todas as expectativas contrárias, e um novo estado de equilíbrio é alcançado, no qual o herói secular está mais próximo de sua identidade judaica.


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