CORPOS EM MOVIMENTO: O CINEMA HAREDI
Por Bruno Szlak
A sequência de filmes de Yehuda Grovais,
conhecida como a Vingança Judaica (Hanekama
HaYehudit) começa em 2000, com um filme cujo título dará nome à série e foi
um dos primeiros filmes de ação no mercado ortodoxo. Tendo sido muito bem
aceito pelas audiências jovens masculinas, a fórmula foi rapidamente repetida
por Grovais, que produz uma sequência com 4 filmes: A Vingança Judaica 2 – a
captura de Eichmann; A Vingança Judaica 3 – missão no Nepal; A Vingança Judaica
4 – o arquivo secreto; A Vingança Judaica 5 – me tirem de minha prisão pessoal.
Ao longo dos anos seguintes muitos filmes do mesmo gênero foram produzidos por
Grovais e por outros cineastas. Estes filmes representam um fenômeno da
primeira década do século XXI na produção de filmes por e para o público
ultra-ortodoxo.
Ainda que muito populares no público jovem haredi
(ultra-ortodoxo judeu), os filmes da série A Vingança Judaica nunca receberam a
aprovação formal das autoridades rabínicas. Ao contrário, sua popularidade
despertou muita controvérsia e provocou a produção de muitos panfletos de
protesto. O processo de negociação gradual para a aceitação dos filmes pelo
público ortodoxo e pelas autoridades rabínicas significa que os filmes são defendidos
inicialmente e principalmente como ferramentas educacionais. Para que o filme
possa ser acolhido pela autoridade rabínica, sua trama deve reafirmar
positivamente formas consensuais de comportamento. Ainda que os filmes
ortodoxos não possam ser vistos simplesmente como propaganda dos discursos
ortodoxos oficiais, suas narrativas evitam tratar diretamente de pontos sociais
e ideológicos que possam ser entendidos como controversos seja entre grupos de
diferentes denominações ortodoxas ou em assuntos como a relação com o serviço
militar obrigatório, por exemplo. O status controverso, dentro do próprio
universo ortodoxo de séries como A Vingança Judaica, pode ser atribuído então a
uma certa transgressão e desafio ao discurso ortodoxo oficial através da experimentação
na linguagem fílmica (pelo menos no universo ortodoxo), pelo gênero de ação
proposto e ainda pelo endereçamento temático da relação dos ortodoxos com o
Sionismo e com as Forças Armadas.
A apropriação do gênero de ação pelo cinema
ortodoxo está longe de ser considerada trivial. No ponto de encontro entre o
mundo ortodoxo e as convenções do cinema hollywoodiano,
a apropriação do gênero engendra uma gama de significados e abre espaços para
limiaridades e transgressão. Conforme Harvey O’Brien (2012), as narrativas dos
filmes de ação apresentam tipicamente histórias redentoras de heroísmo,
asseverando a masculinidade, onde protagonistas ativos superam obstáculos numa
jornada de resoluções pessoais e sociais. Embora não seja simples definir o gênero
de ação, há de se concordar que uma de suas características é uma ênfase no
corpo e na propensão para a ação física espetacular. Daí a tendência para se
incluir nesse tipo de filmes cenas de perseguições, brigas, tiros, explosões,
personagens atléticos e cada vez mais, efeitos especiais ou animações. De
acordo com Lisa Purse (2011, p. 3), o cinema de ação é precisamente definido
pelo seu foco no corpo em movimento, assim: “o corpo é um corpo fisicamente
empoderado, forte, ágil e resiliente, provando a si mesmo no campo da ação e
risco, e dessa maneira desempenha fantasias de empoderamento que são
inerentemente declaradas e atuadas, mais do que abstraídas.”
Para Richard Slotkin (1992, p.8), as noções de
masculinidade ocidentais estão normalmente centradas na apresentação do corpo
em ação e são assim apresentadas nos filmes de ação, associando o poder entre
força mental, o material e o corporal. As narrativas nos filmes de ação
hollywoodianos normalmente calcam-se em histórias de heroísmo e superação ligadas
à mitologia americana e a cristandade, invocando regeneração e superação
através da violência e de sacrifício pessoal.
Essas noções de masculinidade estão em
diametral oposição às noções de masculinidade e heroísmo masculino do mundo
ortodoxo. O modelo ortodoxo idealizado de masculinidade conecta a oposição
binária entre passividade/ação com o da espiritualidade/materialidade. Conforme
Topel, em seu trabalho A Ortodoxia Judaica e seus Descontentes (2011, p. 160):
“Os homens ortodoxos se orgulham do corpo “delicado” e de que suas mãos revelam
não ter se dedicado a trabalhos físicos. O uso de óculos também forma parte
inseparável do corpo ortodoxo masculino. Finalmente, o corpo de homens e
mulheres, geralmente muito pálido, indica a falta de costume de expô-lo ao sol,
o que aponta a alienação da natureza e ao mesmo tempo, o respeito às regras de
recato que obrigam cobrir quase que totalmente o corpo dos judeus observantes.”
O crescimento demográfico e de poder político
da sociedade Haredi nos últimos 30 anos foi acompanhado por um crescente
sentimento de confiança por parte dessa comunidade, abalada, desde meados do
século XX, tanto pelo Holocausto europeu como pela supremacia
do sionismo laico. Somada a esse sentimento de
confiança, a exposição de muitos homens haredim da redoma fechada e protegida
do espaço ortodoxo à sociedade israelense maior os colocou em competição com
novos modelos masculinos, apesar da desaprovação das
autoridades rabínicas, que tentam preservar
uma percepção de vida que enxerga o Estado de Israel laico como um “exílio
espiritual”. No discurso oficial dos rabinos, a única forma de
ação que poderia terminar com esse estado de
“exílio espiritual” seria a ação religiosa, ou
seja, mais estudos da Torá e maior
comprometimento com o cumprimento dos preceitos
religiosos (mitzvot).
Assim, crescentes incidentes de protestos
políticos entre os haredim, incluindo sinais de violência física e verbal –
evidência de que alguns jovens haredim queiram se juntar ao exército e se
engajar na guinada política da sociedade israelense em direção à direita –, têm
uma dimensão relacionada ao próprio corpo. De fato, “ao adotar tal estilo e
ideologia mais rudes, os haredim manifestam seu desejo de possuir um corpo.
Parece ser essa uma expressão subliminar de sua fascinação com as coisas que
foram longamente pensadas serem território dos sionistas, e da qual os
ultraortodoxos foram privados: fisicalidade, masculinidade e busca por ação”
(ARAN; BEM-ARI; STADLER, 2008, p. 25).
Adotando certas características do gênero, os
filmes de ação haredim incluem cenas de intensa ação física, como perseguições,
brigas e tiroteios. Isso é geralmente sublinhado pelo gênero do Western, com
música em ritmo acelerado, relacionando o filme com o gênero popular. A
retratação da violência e do corpo masculino emula as convenções hollywoodianas
da era clássica, distanciando-se imensamente
da violência hiper-realista e sangrenta, do uso intenso de efeitos especiais e
da montagem truncada que caracterizam as produções atuais do gênero. Embora
tais procedimentos possam parecer arcaicos e, por vezes, mostrar certa falta de
suspense, esse não é o caso para o público-alvo, pouco exposto às produções hollywoodianas.
No caso da série Jewish revenge, a experiência visual do cinema de ação alude
não apenas ao desejo dos espectadores haredim de possuir um corpo, mas a um
desejo de corporificar uma posição mais ativa na mitologia nacional israelense.
Ao fornecer um produto “nacional” e “kasher”, que, de certa maneira, atendem
aos anseios do público jovem haredi, Grovais posiciona suas tramas dentro de
temas contemporâneos e históricos da esfera do sionismo militante, evocando,
com plena seriedade, tropos da mitologia sionista que, havia muito, tinham sido
abandonados pelo cinema israelense contemporâneo. Os cinco filmes da série
compartilham argumentos e estruturas narrativas clássicas similares. Trata-se
de narrativas que remetem a missões nacionais, como, por exemplo, a captura de
Adolf Eichmann, na Argentina, pelo Mossad – evento que poderia ser enxergado como
uma das maneiras pelas quais o jovem Estado Sionista afirmava sua capacidade de
buscar seus inimigos onde quer que estivessem, transformando-se no braço
vingador de todo o povo judeu. No centro das narrativas, homens seculares
israelenses encontram-se com homens haredim em ambientes de homens não judeus e
hostis. Com raríssimas exceções, esses homens não judeus são apresentados como
personagens unidimensionais e retratados estereotipicamente como não confiáveis
– por vezes, maus e, em outras ocasiões, inadequados ou estúpidos. Sua única
função na trama é fornecer o background para um relacionamento muito mais
significativo que se revela: o do agente do Mossad com a personagem haredi. O
encontro significativo vai além dos retratos estereotipados do israelense no
discurso haredi. Visto que, em muitos enclaves religiosos, a sociedade haredi
está sob constante ameaça de defecção de seus membros, o discurso prevalente
posiciona o israelense secular como o mal que está fora, contra quem a identidade
interna e esclarecida do haredi é construída. A imagem estereotipada do
israelense secular como símbolo do mal é mantida pela noção de que qualquer
contato com o corpo israelense deve ser limitado ou evitado totalmente. No
texto de Friedman e Hakak (2015, p. 13), é citada a análise de Vered Elimelech sobre
o cinema haredi:
“[...] Vered Elimelech demonstrou que o
encontro com o outro – o não judeu ou o judeu secular – é central em muitos
filmes haredim. Meramente por expor a imagem do outro ao público haredi, o
cinema Haredi já se desvia do discurso dominante Fazendo uma distinção entre a “primeira
geração” de produções haredim (2000-2003) e a segunda geração de filmes
(2003-2010), Elimelech aponta uma mudança na construção do Outro. Nos primeiros
filmes, o Outro – seja secular israelense ou não-judeu – é mostrado como uma
personagem unidimensional, usualmente desprovido de faculdades espirituais e intelectuais,
cujas funções principais na narrativa são a de atuar como uma antítese ao herói
haredi. Em alguns dos últimos filmes, as personagens não-haredim são mais
nuançados. Enquanto que, em última instância, sua função seja a de reforçar o
conjunto de valores haredim, a narrativa expõe suas considerações e motivações
e ao fazê-lo, os privilegia e transgrede o discurso hegemônico. (2015, p. 13)”.
Na série Jewish Revenge, o israelense secular
é um agente da história. A trama se desenrola ao seu redor, e o ponto de vista
dos espectadores é normalmente alinhado com o dele, de forma que o conflito
dramático no coração da trama é motivado por sua história. É apenas no ponto da
crise, quando ele está diante de obstáculos crescentes, prestes a completar a
sua missão, que o herói israelense encontra o herói haredi. Duas coisas
importantes acontecem durante o encontro entre as duas personagens principais
dos filmes: a primeira é que o herói haredi deixa o espaço protegido de sua
comunidade e seu trabalho espiritual e se envolve, física e mentalmente, em
assuntos do Estado secular. Inicialmente relutante, ele prova-se central para o
sucesso da missão, na qual o corpo haredi é também engajado. O herói haredi é
visto também participando em perseguições, ocultando e descobrindo documentos e
até confrontando fisicamente os não judeus. Em segundo lugar, ao se envolver
com a missão nacional, o herói haredi facilita a transformação da visão global
do judeu secular, explicando-lhe a verdadeira natureza da vingança judaica.
Mais do que combates físicos e retaliações, a
verdadeira vingança judaica é guiada pelo
trabalho espiritual de Deus e a continuidade da vida tradicional judaica. Essa
transformação, sendo revelada ao judeu secular, desfaz o conflito no coração da
trama e leva à resolução. A missão é completada, apesar de todas as
expectativas contrárias, e um novo estado de equilíbrio é alcançado, no qual o
herói secular está mais próximo de sua identidade judaica.
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