Respeito
à Dignidade da Mulher Cativa
Por Angelina Mariz de Oliveira
A
grande maioria das mulheres é fisiologicamente mais fraca do que os homens, uma
condição decorrente das diferenças hormonais, originadas de suas origens
cromossômicas. Em quase todas as culturas essa diferença é, ou já foi, vista
como indicativo de subalternidade, inferioridade, incapacidade. É uma condição
usada como justificativa para a exigência de submissão da mulher às
determinações do pai, do irmão, do marido, de familiares e autoridades masculinos.
Em
uma situação de conflitos armados, a captura das mulheres do grupo derrotado
por homens do grupo vencedor é visto como um sinal de força, um troféu, até
mesmo representa enriquecimento. Além disso, a violência sexual é
historicamente uma arma de humilhação e dominação. Essa situação é atual e
corriqueira em conflitos urbanos, em atentados terroristas, em guerras
convencionais. Essa ‘tradição’ inclusive é vista como sinal de virilidade pelas
mulheres do grupo vencedor.
É
flagrante que a sujeição cruel e violenta de mulheres cativas não confere a
essas pessoas o respeito à sua dignidade humana. O tratamento de seres humanos
como objetos, a tortura, a escravidão, a morte brutal... parecem inconciliáveis
com valores tradicionais religiosos, morais e éticos. Há milhares de anos a
humanidade vem lidando com essa tragédia cultural através de leis específicas
regulando o tratamento que deve ser dado às mulheres capturadas e
criminalizando os atos de violência.
Na
Torá, quando os hebreus se tornam um povo - os filhos de Israel - e organizam
um exército, recebem mandamentos claros em relação às mulheres cativas. Lemos
na parashá Ki Tetzê (Devarim-Deuteronômio 21:11-14).
-
proibição de violência sexual;
-
a cativa deve ser levada para a casa do guerreiro;
-
dever de deixar a cativa chorar pela família perdida durante um mês;
-
após esse período, se o captor israelita mantiver o desejo pela cativa, ela
terá todos os direitos de esposa;
-
se depois de um mês o israelita não desejar mais a cativa, ele não pode
vendê-la, nem a escravizar, nem a tratar como serva ou mercadoria, devendo
deixar a mulher livre, pois ela foi humilhada.
O
adjetivo bíblico dado para a mulher cativa desejada pelo guerreiro israelita é
de ser ‘formosa à vista’ – ‘iefat toar’. Essa expressão aparece também como
qualidade de Raquel, esposa de Jacó (Bereshit-Gênesis 29:17); bem como de
Esther que seria rainha de Achashverosh (Esther 2:7). Essa equiparação é
importante para demonstrar que a ‘mulher formosa’ não é responsável pelo abuso
violento do homem, já que é uma qualidade positiva, compartilhada com duas
personalidades judaicas essenciais: aquela que foi o grande amor de Jacó e mãe
de duas tribos; e a rainha que salvou o povo judeu de um decreto de extermínio.
Sobre
essa expressão, ‘formosa à vista’, no começo da Era Comum o Talmude ensina que
o mandamento sobre a cativa de guerra se aplica mesmo que a prisioneira “não seja tão bonita, já que este é um
julgamento subjetivo, dependendo do desejo” do soldado (Kedushim 22a).
Neste Tratado também é afirmado que os mandamentos sobre a prisioneira de
guerra “ensinam que ele (o israelita) não
deveria pressionar ela (a mulher cativa) a ter relação sexual durante a guerra,
mas ele deveria primeiro levá-la para dentro de sua casa”. E ainda afirma
que cada guerreiro judeu só poderia levar uma única cativa, nenhuma a mais, nem
outra cativa para ser entregue ao pai do guerreiro.
Rashi,
na Idade Média (França, 1040-1105) explica que a punição ao guerreiro judeu que
descumprir esses mandamentos seria ser obrigado a conviver com uma esposa em
uma relação de ódio, que iria gerar “um
filho desencaminhado e rebelde”. Sua conclusão decorre da análise conjunta
dos versículos 11 a 14, e 15 a 21, do Capítulo 21 de Devarim-Deuteronômio.
Mais
de três mil anos depois do recebimento da Torá ainda se procura modificar a
cultura de violência contra a mulher, especialmente durante as guerras. São
milhares os exemplos de textos normativos e legais sobre essa questão ao longo
dos séculos.
Após
a tragédia da Segunda Guerra Mundial, a maior parte das nações se comprometeu
com a Convenção de Genebra, de 12 de agosto de 1949, que estipula em seu Artigo
27:
“Mulheres devem ser especialmente protegidas
contra qualquer ataque a sua honra, em particular contra estupro, prostituição
forçada ou qualquer forma de investida indecente”.
Em
9 de junho de 1994 a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos
(OEA) expediu a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher – “Convenção de Belém do Pará”. Seu Artigo 2
estabelece os seguintes parâmetros:
“Entende‐se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica:
a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor
compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo‐se, entre outras formas,
o estupro, maus‐tratos
e abuso sexual;
b. ocorrida na comunidade e cometida
por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual,
tortura, tráfico
de mulheres, prostituição
forçada,
sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições
educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e
c. perpetrada ou tolerada pelo Estado
ou seus agentes, onde quer que ocorra”.
Apesar
do longo histórico legislativo sobre a proibição de uso de violência sexual
contra mulheres, em especial em conflitos, a questão continua muito preocupante
no Século XX. O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU)
aprovou a Resolução 1325 sobre Mulheres, Paz e Segurança, em 31 de outubro de
2000, onde encontramos a seguinte invocação:
“Apela a todas as partes envolvidas em
conflito armado para que tomem medidas especiais de proteção das mulheres e das
jovens contra a violência baseada na diferença de gênero, em particular a
violação e outras formas de abuso sexual, bem como todas as outras formas de
violência que ocorrem em situações de conflito armado”.
No entanto, os conflitos recentes
demonstram que a violência contra mulheres e meninas é uma importante arma para
subjugar outros grupos sociais. A violência sexual deixa marcas físicas e
psicológicas traumáticas, e a mensagem de que uso da força contra pessoas
capturadas seria por si só uma vitória dos agressores.
Apesar de tantas normas, leis e
penalidades, o fato é que em poucas sociedades o soldado é treinado para conter
seus impulsos violentos excessivos. Poucos exércitos realmente punem os atos de
violência praticados por sua tropa contra inimigos capturados e aprisionados.
Em 7 de outubro de 2023 os homens do
Hamas mais uma vez demonstraram o abuso de seu poder contra pessoas atacadas e
subjugadas. Com o novo agravante de as violências sexuais e outras barbaridades
terem sido filmadas e divulgadas em rede social mundial, como um filme de ação.
Vivemos um momento em que a violência
contra mulheres e meninas nos conflitos é divulgada e enaltecida, inspira
muitas pessoas a agirem da mesma forma, criando um tenebroso e perigoso ciclo
de decadência humana. São estratégias de destruição, que nem levam à criação de
sociedades fortes e saudáveis.
E as leis? Nenhuma lei penal existe
espontaneamente, as leis são criações políticas humanas; para elas serem
eficazes é necessário que as pessoas as façam ser cumpridas. É como o projeto
de construção de uma escola: não basta a planta arquitetônica e o projeto de
engenharia, é preciso que as pessoas construam a escola, e que depois o local
seja usado para compartilhar conhecimento.
Os Estados e organizações comunitárias
demonstram que têm grandes dificuldades em garantir segurança às meninas e
mulheres submetidas durante conflitos. Presenciamos mesmo a omissão de
importantes organismos internacionais, em um silêncio aterrorizador. E os
Estados e grupos que praticam a barbaridade, incluindo a violência sexual
contra seus prisioneiros, continuam a agir impunes.
Para isso mudar é preciso que cada um
de nós se manifeste explicitamente, com coragem e vigor, clamando pelo
cumprimento das leis, exigindo que as autoridades e instituições internacionais
cumpram suas funções. Falar dessa questão com outras pessoas também é relevante
na ‘construção desse edifício de respeito à dignidade de meninas e mulheres’. A
educação, a conscientização de cada ser humano é essencial para combater o
enaltecimento e propagação da violência sexual contra o ser humano capturado,
seja mulher ou seja homem, independente de sua orientação sexual.
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