NÃO MATARÁS?
Por Angelina Mariz de Oliveira
O Judaísmo, como religião e como cultura, se orgulha de ter
como valor maior a vida. A Torá contém expressamente as ordens de ‘não matar’
(Êxodo, 20:13 e Deuteronômio, 5:17) e de ‘escolher a vida’ (Deuteronômio,
30:19). Lembrando que a proibição ao assassinato é um mandamento universal,
para toda a humanidade, como lemos nas reprimendas de Deus quando Caim matou
seu irmão Abel (Gênesis, 4:10-12), e nas leis dadas a Noé após o dilúvio
(Gênesis, 9:6).
A proibição ao assassinato, porém, é dirigida para as
pessoas. É uma proibição de uso da força para resolver com as próprias mãos
alguma disputa ou diferença com outra pessoa. Os juízes que julgavam o povo
hebreu, no entanto, tinham autorização, e até o dever, de condenar à morte
pessoas que tivessem praticado ações consideradas abomináveis como, entre
outras, homicídio, adultério ou trabalhar no Shabat.
No decorrer da história Judaica, foram criadas regras que
procuravam evitar a pena de morte. Como, por exemplo, a exigência de que duas
testemunhas atestem a prática do crime (Talmud, Sanhedrin 37b). Além disso,
essas duas testemunhas também devem ter advertido a pessoa para não cometer o
erro; e a pessoa deve ter declarado que ouviu os avisos, mas mesmo assim
praticaria o delito. Também existe a proibição de condenação à morte se todos
os juízes unanimemente decidirem pela aplicação dessa pena. E mais ainda, um
tribunal que condenasse alguém à morte no período de setenta anos, deveria ser
considerado uma ‘corte assassina’ (Talmud, Makkot 7a).
Na moderna legislação brasileira não encontramos o comando
direto e objetivo de ‘não matar’, mas o valor de defesa da vida, e de punição
do assassinato faz parte de várias normas. Por exemplo:
“Não haverá penas de morte (...)” (Constituição Federal,
art. 5º, XLVII);
“Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos”
(Código Penal, art. 121);
“Matar mulher por razões da condição do sexo feminino: Pena
– reclusão de vinte a quarenta anos” (Código Penal, art. 121-A).
Mas esse comando também não é absoluto, pois existe a
previsão de pena de morte em casos de guerra (Constituição Federal, art. 5º,
XLVII). Também é prevista a possibilidade da inexistência de crime nos casos de
legítima defesa, quando alguém ao se defender mata seu agressor, ou agressor de
outra pessoa (Código Penal, arts. 23, II e 25).
Em Israel a pena de morte é prevista para casos de nazistas
genocidas e de traição em tempos de guerra. Foi aplicada no conhecido
julgamento de Adolf Eichmann. Existe um projeto de lei estendendo a aplicação
da pena de morte para terroristas que tenham assassinado israelenses. É uma
norma polêmica que está em discussão desde 2018.
Como se vê, nesses três sistemas normativos (a Torá, e as
modernas legislações brasileira e israelense) prevalece o comando de ‘não
matar’. Essa regra geral é essencial para garantir a estabilidade e a
pacificação social, para impedir os abusos da vingança, e a
desproporcionalidade das reações punitivas aos erros e crimes.
Ao analisar as regras, a questão parece clara e solucionada.
No entanto, a realidade traz situações trágicas e desafiadoras. Um dos aspectos
que dificulta a criação de uma sociedade sem homicídios é uma parcela
significativa dessa sociedade aceitar a morte como uma forma de solução de
conflitos.
No Brasil, a execução de negros é cotidiana, seja pelas
forças públicas de defesa, seja por grupos criminosos. O feminicídio é modo
descontrolado de lidar com conflitos familiares. O assassinato de pessoas com
opções sexuais não tradicionais é dos mais altos índices mundiais. São milhares
de homicídios ao ano que desprezam a proibição expressa de assassinato.
Em Israel há a estratégia de guerra de executar líderes
terroristas fora dos campos de batalha, muitas vezes junto com membros não
combatentes de suas famílias, como crianças e esposas. Sem analisar o valor e a
necessidade dessa tática de combate, ela tem o efeito de não cumprir o comando
de não matar, ou de matar apenas após um julgamento por uma corte imparcial.
A questão de ‘não matar’ se torna mais complexa se adotamos
as tradições judaicas que ampliam esse comando para as mortes sociais,
provocadas pelas difamações, fofocas, calúnias. No atual contexto de nossas
sociedades encantadas por fake news, dos cancelamentos nas redes sociais, do
uso abusivo do poder da comunicação, a morte social não poucas vezes tem levado
à morte física, através de suicídios ou ataques em escolas; cujos índices têm
crescido, especialmente entre adolescentes.
No Talmud, e em nossas sociedades, se discute se a ausência
de penas de morte não estimula os assassinatos, já que potenciais homicidas
saberão de antemão que não sofrerão a pena capital. A solução adotada pela
tradição Judaica é prevenir o crime, prevenir através do estudo e da educação,
de crianças e adultos. O fortalecimento das relações sociais e das redes de
amparo, a valorização da dignidade humana, são elementos eficazes contra a
violência em geral, e mesmo contra a violência extrema dos homicídios.
Algumas ações individuais também são importantes na
prevenção dos assassinatos, e tornar eficaz o comando de ‘não matar’:
- Avaliar as palavras que serão pronunciadas e escritas,
para que não prejudiquem, humilhem, nem destruam, mesmo que sejam palavras
verdadeiras;
- Participar de grupos de estudo e patrocinar a educação das
crianças;
- Verificar que as empresas, entidades e instituições nas
quais você trabalha, frequenta, negocia, apoia, e para as quais contribua
estejam dedicadas à prática da justiça social, que é uma poderosa forma de
evitar a violência;
- Escolher como líderes, legisladores e administradores
públicos pessoas comprometidas com a defesa da vida.
Apesar de cada pessoa ser apenas uma em sete bilhões de
humanos, cada vida que ela puder ajudar a salvar com suas atitudes será um
universo preservado. Será um exemplo para os demais, uma fonte de inspiração, e
mais uma contribuição para a era messiânica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário