Você sabia que em 1506, durante o reinado de D. Manoel I,
o Venturoso, aconteceu em Portugal um massacre de mais de dois mil judeus,
culpados pela falta de alimentos e consequente fome em Lisboa, pela seca que
castigava a cidade e pela própria peste que assolava a capital nos últimos 6
meses?
“A
19 de Abril de 1506, um Domingo de Pascoela, a minoria cristã-nova sentiu, pela
primeira vez em Portugal, uma inaudita violência sobre pessoas e bens.
Damião
de Góis escreveu que naquele dia a igreja do convento de São Domingos estava
repleta de cristãos-velhos, pois surgira um rumor de que a 15 do mesmo mês,
acontecera um milagre naquele templo dominicano. Os crentes aguardavam uma
repetição. E ele aconteceu, aos olhos dos cristãos: uma luz brilhou no crucifixo
da igreja e a multidão rejubilou. Menos uma pessoa. Que chamou a atenção para o
facto de se tratar de um reflexo de uma das muitas candeias que estavam acesas.
Esta pessoa era um cristão-novo, mas para os cristãos-velhos era um judeu e,
por isso, alvo de ódio.”
Este cristão-novo (ex judeu ou judeu secreto) foi
enxotado para a rua e morto em poucos minutos. Logo então queimaram-no no
Rossio. O irmão do morto tentou acudir e foi igualmente assassinado e queimado
na fogueira. Foi então que, aproveitando-se do tumulto reinante, um frade
dominicano iniciou uma prédica contra os judeus. A multidão revoltava-se contra
a comunidade judaica, clamava blasfêmias insultando os judeus, e quando dois
outros frades aproximaram-se do orador empunhando um crucifixo e gritando
palavras de ordem, “heresia, destruamos este povo execrável”, o massacre
iniciou.
“Os
crentes espalharam-se pelas ruas de Lisboa; a esta multidão juntou-se, segundo
o historiador António Borges Coelho, a chusma das naus da Índia, que, atiçada
pela pregação dos frades, violou, matou e queimou milhares de pessoas.
Arrombavam as portas das casas, em busca de cristãos-novos, perseguiam quem
tentava fugir, carregavam mortos e vivos para as fogueiras que iam sendo
ateadas em vários locais da cidade, como o Rossio e a zona ribeirinha.”
Esta carnificina, os saques e destruição das casas e
negócios dos cristãos-novos duraram 3 dias e segundo os historiadores foram
registradas mais de duas mil mortes.
D. Manoel encontrava-se a salvo, fora da cidade, seguindo
o covarde costume dos nobres fidalgos durante os tempos de peste, e ao saber do
ocorrido ficou extremamente aborrecido e indignado, tratando de imediato de
punir os culpados.
“Para
castigar os habitantes de Lisboa, D. Manuel retirou uma série de privilégios à
cidade: aqueles que se provara terem participado no morticínio perderam todos
os seus bens; os que não estavam envolvidos, mas nada fizeram para deter a
multidão, perderam um quinto dos seus bens; foi suspensa a eleição dos representantes
da Casa dos Vinte Quatro e dos seus quatro representantes na vereação municipal
da cidade.”
O pogrom de Lisboa de 1506 é magistralmente relatado no
livro O Último Cabalista de Lisboa,
de Richard Zimler.
Baseado em cronistas da época, livros de Berequias Zarco recentemente
descobertos e historiadores contemporâneos, o autor do romance relata em
detalhes assustadores as atrocidades cometidas nestes dias de pogrom em uma
Lisboa desvairada, abandonada à sua sorte, desprotegida pelas autoridades, enfraquecida
pela falta de alimentos, água e tratamentos médicos adequados à peçonhenta
peste.
Durante o sagrado feriado religioso da Páscoa, os
cristãos-novos são brutalmente atacados, mortos e simplesmente queimados em
ruas e praças, a fumaça e o odor forte da carne queimada espalhando-se por toda
a região, alertando a população sobre o triste ocorrido.
Os judeus secretos de Lisboa sofrem também as
consequências deste desvario da população carente da cidade e neste reboliço
acontece o roubo ininteligível de um documento em execução: uma Haggada, guardada
por Abraão Zarco (um grande e poderoso cabalista da época) e sua morte junto a
uma moça desconhecida.
Surge aí um mistério a ser desvendado, quem matou Abraão,
quem levou a Haggada, qual o significado desta obra? Como entraram os assassinos em uma cave
secreta, subterrânea, muito bem guardada e escondida e do conhecimento de
pouquíssimas pessoas?
Cheio de dor e indignação, incrédulo e transtornado pela
inverossimilhança do ocorrido, Berequias Zarco, discípulo e sobrinho do morto,
sente que tem agora a missão de descobrir o assassino.
Esta obra foi escrita em 1966 e recusada por editoras de
língua inglesa, mas após ter-se tornado um best seller em português, foi
reconhecida internacionalmente como um grande livro histórico vindo a ser traduzido
para mais de 20 idiomas.
Zimler escreve com maestria ao relatar com esmero os
hábitos dos judeus secretos no início do século XVI, cuja sinagoga fora
eliminada em 1947, vivendo a partir desta data num clima de não mais existir
judeus em Lisboa.
Somos apresentados à vida destes cripto-judeus em seu cotidiano
conturbado, sempre alerta a fim de não levantar suspeitas e não serem
denunciados pelos vizinhos e até pelos próprios cristãos-novos. Conhecemos suas
artimanhas para enganar os vizinhos, desconfiando mesmo dos que se dizendo
amigos, preferiam muitas vezes receber um privilégio dos cristãos-velhos a
esconder ou proteger alguém do próprio sangue. O clima de desconfiança nesta
época aumentava o sofrimento de todos na comunidade e a incapacidade de se
levar uma vida tranquila.
Um excelente romance histórico assim comentado pelo The
Jerusalem Post “O dom que Zimler possui de por a descoberto o horror das
injustiças humanas e ainda assim encontrar verdades universais e poesia na
existência do dia a dia (...) faz dos seus livros uma leitura indispensável.”
Lamento não contar a solução do mistério da morte de
Abraão, e do destino dos livros saídos de Portugal numa tentativa de serem
preservados para o futuro do povo judeu, mas infelizmente ainda me encontro na
página 120, capítulo VI, deste emocionante livro.
Este texto é uma colaboração especial de Itanira Heineberg para os canais do EshTá na Mídia.
FONTES:
O Último Cabalista de Lisboa – Richard Zimler – Porto
Editora
Nenhum comentário:
Postar um comentário