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terça-feira, 16 de outubro de 2018

VOCÊ SABIA? - O massacre dos cristãos novos em Lisboa



Você sabia que em 1506, durante o reinado de D. Manoel I, o Venturoso, aconteceu em Portugal um massacre de mais de dois mil judeus, culpados pela falta de alimentos e consequente fome em Lisboa, pela seca que castigava a cidade e pela própria peste que assolava a capital nos últimos 6 meses?

“A 19 de Abril de 1506, um Domingo de Pascoela, a minoria cristã-nova sentiu, pela primeira vez em Portugal, uma inaudita violência sobre pessoas e bens.
Damião de Góis escreveu que naquele dia a igreja do convento de São Domingos estava repleta de cristãos-velhos, pois surgira um rumor de que a 15 do mesmo mês, acontecera um milagre naquele templo dominicano. Os crentes aguardavam uma repetição. E ele aconteceu, aos olhos dos cristãos: uma luz brilhou no crucifixo da igreja e a multidão rejubilou. Menos uma pessoa. Que chamou a atenção para o facto de se tratar de um reflexo de uma das muitas candeias que estavam acesas. Esta pessoa era um cristão-novo, mas para os cristãos-velhos era um judeu e, por isso, alvo de ódio.”

Este cristão-novo (ex judeu ou judeu secreto) foi enxotado para a rua e morto em poucos minutos. Logo então queimaram-no no Rossio. O irmão do morto tentou acudir e foi igualmente assassinado e queimado na fogueira. Foi então que, aproveitando-se do tumulto reinante, um frade dominicano iniciou uma prédica contra os judeus. A multidão revoltava-se contra a comunidade judaica, clamava blasfêmias insultando os judeus, e quando dois outros frades aproximaram-se do orador empunhando um crucifixo e gritando palavras de ordem, “heresia, destruamos este povo execrável”, o massacre iniciou.

“Os crentes espalharam-se pelas ruas de Lisboa; a esta multidão juntou-se, segundo o historiador António Borges Coelho, a chusma das naus da Índia, que, atiçada pela pregação dos frades, violou, matou e queimou milhares de pessoas. Arrombavam as portas das casas, em busca de cristãos-novos, perseguiam quem tentava fugir, carregavam mortos e vivos para as fogueiras que iam sendo ateadas em vários locais da cidade, como o Rossio e a zona ribeirinha.”

Esta carnificina, os saques e destruição das casas e negócios dos cristãos-novos duraram 3 dias e segundo os historiadores foram registradas mais de duas mil mortes.
D. Manoel encontrava-se a salvo, fora da cidade, seguindo o covarde costume dos nobres fidalgos durante os tempos de peste, e ao saber do ocorrido ficou extremamente aborrecido e indignado, tratando de imediato de punir os culpados.

“Para castigar os habitantes de Lisboa, D. Manuel retirou uma série de privilégios à cidade: aqueles que se provara terem participado no morticínio perderam todos os seus bens; os que não estavam envolvidos, mas nada fizeram para deter a multidão, perderam um quinto dos seus bens; foi suspensa a eleição dos representantes da Casa dos Vinte Quatro e dos seus quatro representantes na vereação municipal da cidade.”

Homenagem aos judeus assassinados no massacre de Lisboa, em 1506, no Largo São Domingos.
"EM MEMÓRIA DOS MILHARES DE JUDEUS VÍTIMAS DA INTOLERÂNCIA E DO FANATISMO RELIGIOSO ASSASSINADOS NO MASSACRE INICIADO A 19 DE ABRIL DE 1506, NESTE LARGO."

O pogrom de Lisboa de 1506 é magistralmente relatado no livro O Último Cabalista de Lisboa, de Richard Zimler.
Baseado em cronistas da época, livros de Berequias Zarco recentemente descobertos e historiadores contemporâneos, o autor do romance relata em detalhes assustadores as atrocidades cometidas nestes dias de pogrom em uma Lisboa desvairada, abandonada à sua sorte, desprotegida pelas autoridades, enfraquecida pela falta de alimentos, água e tratamentos médicos adequados à peçonhenta peste.

Durante o sagrado feriado religioso da Páscoa, os cristãos-novos são brutalmente atacados, mortos e simplesmente queimados em ruas e praças, a fumaça e o odor forte da carne queimada espalhando-se por toda a região, alertando a população sobre o triste ocorrido.

Os judeus secretos de Lisboa sofrem também as consequências deste desvario da população carente da cidade e neste reboliço acontece o roubo ininteligível de um documento em execução: uma Haggada, guardada por Abraão Zarco (um grande e poderoso cabalista da época) e sua morte junto a uma moça desconhecida.

Surge aí um mistério a ser desvendado, quem matou Abraão, quem levou a Haggada, qual o significado desta obra?  Como entraram os assassinos em uma cave secreta, subterrânea, muito bem guardada e escondida e do conhecimento de pouquíssimas pessoas?

Cheio de dor e indignação, incrédulo e transtornado pela inverossimilhança do ocorrido, Berequias Zarco, discípulo e sobrinho do morto, sente que tem agora a missão de descobrir o assassino.

Esta obra foi escrita em 1966 e recusada por editoras de língua inglesa, mas após ter-se tornado um best seller em português, foi reconhecida internacionalmente como um grande livro histórico vindo a ser traduzido para mais de 20 idiomas.


Zimler escreve com maestria ao relatar com esmero os hábitos dos judeus secretos no início do século XVI, cuja sinagoga fora eliminada em 1947, vivendo a partir desta data num clima de não mais existir judeus em Lisboa.

Somos apresentados à vida destes cripto-judeus em seu cotidiano conturbado, sempre alerta a fim de não levantar suspeitas e não serem denunciados pelos vizinhos e até pelos próprios cristãos-novos. Conhecemos suas artimanhas para enganar os vizinhos, desconfiando mesmo dos que se dizendo amigos, preferiam muitas vezes receber um privilégio dos cristãos-velhos a esconder ou proteger alguém do próprio sangue. O clima de desconfiança nesta época aumentava o sofrimento de todos na comunidade e a incapacidade de se levar uma vida tranquila.

Um excelente romance histórico assim comentado pelo The Jerusalem Post “O dom que Zimler possui de por a descoberto o horror das injustiças humanas e ainda assim encontrar verdades universais e poesia na existência do dia a dia (...) faz dos seus livros uma leitura indispensável.”
Lamento não contar a solução do mistério da morte de Abraão, e do destino dos livros saídos de Portugal numa tentativa de serem preservados para o futuro do povo judeu, mas infelizmente ainda me encontro na página 120, capítulo VI, deste emocionante livro.


Este texto é uma colaboração especial de Itanira Heineberg para os canais do EshTá na Mídia.

FONTES:

O Último Cabalista de Lisboa – Richard Zimler – Porto Editora







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