Noé. Noach.
Conto a história e deixo perguntas. A Parashá tem praticamente 2 partes.
Na primeira conta que Deus, desaprovando a corrupção da humanidade que criou, decide destruí-lá ou, mais acuradamente, trocá-la. Procura Noé que, aos olhos de Deus, é o único homem justo e íntegro e lhe comanda que construa uma arca, dá as medidas e tudo, e nela embarca sua família inteira e lhe diz que virão até ele pares de todos os animais da terra e do céu, todos os seres “que têm sangue vivo”. E então faz chover por sete meses ininterruptos até que toda a superfície fica submersa e tudo que habitava a terra, e todos e tudo “em cujas narinas tem sopro de vida”, morre.
Então, diz a Torá, que num certo dia Ele "Se lembrou de Noé e das espécies que estavam na arca e faz as águas baixarem. Noé manda um corvo e depois uma pomba, que vai e vem várias vezes, e quando ela traz no bico uma folha seca, ele se certifica de que é seguro desembarcar. Deus então comanda que desembarquem todas as espécies, inclusive a humana, para repovoar a terra.
Logo, para celebrar a vida preservada, Noé constrói um altar e oferece em sacrifício um filhote de cada espécie, consumido pelo fogo. Mas Deus se arrepende desta destruição e faz uma aliança com Noé, prometendo que nunca mais a água alagará a terra e matará. Aí segue um extenso relato da genealogia a partir de Noé e seus três filhos, e netos nascidos pós dilúvio. Desta parte da Parashá há muitos comentários, inclusive do magnífico Jonathan Sacks, z’l, de que há uma mensagem importante aí, de que o leão pode conviver em paz com o cordeiro como também consta de uma visão do profeta Isaías.
E, para a pergunta que vem - mas, como isso seria possível? - vem a resposta: “porque se não, ambos morrerão afogados”. Isso me soa tão atual, me remete à situação da extrema divisão da sociedade israelense, nas ruas há quase um ano e que infelizmente se uniu pela horrível ação do Hamas em 7 de abril, hoje lutarão lado a lado dentro de Gaza todos os jovens soldados independentemente de em quem votaram, se protestaram na rua ou não, mas todos jovens saudáveis e motivados.
E ainda na Aliança que faz com Noé Deus profere:
Quem quer que derrame sangue humano, por mãos humanas terá seu sangue derramado, porque a humanidade foi feita à imagem de Deus. Estamos literalmente reencenando as palavras de Deus?
E para mim ainda fica a perniciosa pergunta: se Deus se lembrou de Noé após 150 dias, antes disso com o que estava ocupado? Onde está Deus e o que faz quando não se ocupa de nós, não se lembra de nós? E nós, onde estamos quando não nos lembramos dele? Chaguim ou crises como a de agora nos tiram deste tipo de distração e nos fazem lembrar de Deus?
A segunda parte desta Parashá conta que todos na Terra falavam a mesma língua e as mesmas palavras. Conta que se estabeleceram na região de Shinar, lá decidiram fazer tijolos e construir uma cidade e uma torre para “se fazerem um nome” e desta forma se protegerem de ser espalhados pela terra. E quando, aparentemente em nova lembrança, Deus desceu para checar como a humanidade estava indo, deparou-se com esta cidade e a torre já alta. Diante disso exclamou: “se este povo falando uma só língua e as mesmas palavras conseguiu fazer isso, então nada a que se proponham fazer lhes será impossível!” E então decidiu confundi-los para que não mais entendessem um ao outro. Entendo que ele se surpreendeu. Mas teria ficado com medo ou com ciúmes? Será que Deus, ameaçado, quis mesmo punir os homens com a confusão de Babel? Podemos antropomorfizá-ló a este ponto?
Evidentemente há muitos comentários e análises sobre isso.
J. Sacks explica que Babel era um templo em forma de pirâmide em degraus e que de fato existiram 31 cidades com estes templos na Babilônia e a maioria tinha na porta a inscrição: “Porta para o Ceu” ou “O topo alcança o céu”…; o que Sacks diz é que se há algo que faz Deus rir é perceber os homens levando-se a sério, dando-se importância… e completa constatando que justamente na Mesopotâmia começaram os impérios da história…
Vimos na nossa discussão semanal no Grupo da Parashá que Yeshayahu Leibowitz, cientista e filósofo israelense, ortodoxo, parece "que não foi punição, mas ao contrário, uma ação em benefício da humanidade” porque ao impedir a intenção daquela geração de garantir uma só língua e uma só fala para não serem espalhados ou divididos, Deus impede ou dificulta "a tendência à centralização ou totalitarismo" - embora pareça a muitos que a concordância, a unanimidade ou a ausência de conflitos seja ideal, na verdade está é uma situação estéril, não há diferença de opinião e portanto, não há luta pelos diferentes pontos de vista, não há propósito. Só em uma sociedade plural, resumindo nas minhas palavras, é possível insurgir-se e criar algo novo, evoluir… diz Leibowitz: o propósito que podemos discernir na existência consiste justamente na diferenciação em pontos de vista contrastantes e diferenças sobre as quais as pessoas lutam e é por isso que a sua existência adquire valor moral”
Ainda, similar, uma importante contribuição sobre este pedacinho da Torá, a do filósofo franco argelino judeu Jacques Derrida que escreveu o livro Torres de Babel. Lá ele também se pergunta se Deus, ao estabelecer a confusão, ou confundir criando diferentes línguas e impedindo os homens de entenderem, o fez para os punir, talvez por ciúme? E também conclui que não; o nome de Babel dado após este episódio, vimos que foi comum, e significaria Bavel, Ba é pai e El é Deus, Deus fez prevalecer seu nome como o primeiro, o principal, acima de qualquer nome dado pelos homens, acima de qualquer nação. Ao constatar que a humanidade faria qualquer coisa confundiu-os, deu-lhes a incompletude, o impossível e a necessidade de batalhar por ele. Tornou imperiosa a necessidade de tradução, mas também a tornou impossível… Como assim? Construir sem tradução é impossível. Babel quer dizer confusão mas é intraduzível, o nome do pai Deus é intraduzível, e é impronunciável…ele, e também Sacks, ressaltam a poesia deste pequeno trecho, rico em termos literários. Derrida finalmente propõe que “o sagrado não seria nada sem uma tradução, e a tradução não aconteceria sem o sagrado.”
Eu reproduziria, em meus termos, e com o amor que tenho pela tradução, que além de criar e recriar uma mensagem ao traduzi-la, a tornamos mais sagrada e o que há de sagrado nela, nos permite torná-la compreensível pela tradução. A repetida leitura e tradução coletiva da Torá a torna cada vez mais sagrada e a nós também….
E que o leão e o cordeiro possam algum dia ler juntos…
Shabat Shalom.
Juliana Rehfeld