O Adultério Caducou?
Por Angelina Mariz de Oliveira
A proibição de pessoas casadas terem relações sexuais com outras
pessoas que não seu cônjuge é clara e direta na Torá. Nos Dez Mandamentos o
sétimo pronunciamento é objetivo: “Não adulterarás” (Shemot, 20:13).
Na obra Mechiltá a proibição ao adultério é relacionada ao
segundo mandamento, que proíbe a idolatria. Isso em decorrência da conclusão de
que se alguém trai a relação conjugal, tem potencial para trair Deus.
Os Sábios também equiparam no conceito de adultério ao
comportamento impróprio, de luxúria, não sendo necessária essencialmente a
consumação da relação sexual, ou mesmo seus atos preliminares. Essa ampliação
da definição de adultério permite incluir as modernas conexões sexuais virtuais
quando praticadas por pessoas casadas.
Antes dos Dez Mandamentos, desde que Noé e seus filhos são
salvos do Dilúvio, os sábios inferem que Deus proibiu o adultério para toda a
humanidade. E ainda, quando os hebreus eram uma família de Jacó e seus filhos,
lemos sobre a suspeita do adultério de Tamar, e a condenação à morte por
apedrejamento proferida por Judá (Bereshit, 38:24).
Após a proibição expressa, a Torá vai reforçar e esclarecer
o mandamento no livro de Vaikrá. Na tradução de Rashi:
MITZVÁ: “Não deite carnalmente com a mulher de seu próximo,
uma vez que isso o impurificará com ela” (Vaikrá, 18:20, p. 206);
PENA: “Um homem que cometer adultério com a mulher de outro
homem; que cometer adultério com a mulher de seu próximo, o adúltero e a
adúltera serão mortos” (Vaikrá, 20:10, p. 232).
De acordo com o Tratado Sanhedrim do Talmude, a morte do
homem e da mulher deveria ser por estrangulamento (52b). Se a adúltera, porém,
fosse filha de um cohen, deveria ser executada pelo fogo.
Apesar da dureza das penas, encontramos vários relatos e
denúncias de adultério na Bíblia Hebraica. Um caso emblemático foi a relação de
David com Batsheva (Samuel II, cap. 11). O segundo rei de Israel, apesar de
acusado pelo Profeta Natan, foi perdoado por Deus do adultério e do assassinato
de Urias, esposo de Batsheva.
Após a queda do Segundo Templo, o Talmude nos traz regras
que atenuam a aplicação da pena de morte aos adúlteros:
- Como em todas as penas capitais, era necessário que o
adultério tivesse sido cometido voluntariamente e conscientemente, e que duas
testemunhas tivessem advertido os adúlteros de que estavam transgredindo uma
mitzvá;
- Só se aplicava à esposa de um judeu e a um homem judeu;
- O termo ‘homem’ exclui o menor de idade;
- A frase ‘quem comete adultério com a esposa de outro
homem’ exclui a esposa de um menor, já que o casamento de um menor de idade é
inválido;
- É excluída a esposa de um não judeu, e o não judeu que
tiver relações sexuais com uma judia casada, porque não existe casamento
judaico válido entre estas pessoas.
Nessas hipóteses não era aplicada a pena de morte, mas a de
chibatadas (Sanhedrim, 52b).
Os rabinos do Talmude concluem, porém, que desde que não
existem mais cohanim servindo no Templo, não há mais julgamentos de casos com
condenação a penas capitais, e, portanto, é impossível aplicar esse tipo de
sanção aos adúlteros (Sanhedrim, 52b).
Apesar desse entendimento, Maimônides, na Idade Média, vai
relacionar em sua obra “Os 613 Mandamentos” a obrigação de condenar os
adúlteros à morte pelo estrangulamento como preceito positivo 227. Já a
proibição ao adultério é encontrada no preceito negativo 347.
No Brasil, o antigo Código Civil de 1916 determinava que o
adultério autorizava o desquite (art. 317), mas não era suficiente para
questionar a presunção de legitimidade dos filhos (art. 343). Esses comandos
legais foram revogados em 1977 pela Lei nº 6.515, que não inclui o adultério
como fato relevante para a relação conjugal ou para a dissolução do casamento.
No entanto na esfera criminal, o Código Penal instituído
pelo Decreto-Lei nº 2848 de 1940, estabelecia que o adultério era crime contra
o casamento: Art. 240 - Cometer adultério:
Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses.-
Incorre na mesma pena o co-réu. A ação penal somente pode ser intentada pelo
cônjuge ofendido, e dentro de 1 (um) mês após o conhecimento do fato.
Esse tipo penal vigorou até 2005, quando foi revogado pela
Lei nº 11.106. Ou seja, apesar de o adultério ter sido excluído pelo Direto
Civil das questões que merecem interferência da legislação na esfera privada,
por vinte e oito anos continuou sendo definido como crime, passível de
detenção.
O adultério, no entanto, continua a ser objeto de litígios
judiciais. A atual jurisprudência dos Tribunais de Justiça admite a condenação
por dano moral em casos de adultério público (por exemplo no processo nº
1027925-45.2023.8.26.0002); ou então nos casos de falsa acusação de prática de
adultério.
No âmbito penal, o Supremo Tribunal Federal julgou que o
adultério da esposa não permite o feminicídio, sob alegação de ‘legítima defesa
da honra’ (ADPF 779). Em seu voto o Ministro Dias Toffoli afirma:
“A traição se encontra inserida no contexto das relações
amorosas. Seu desvalor reside no âmbito ético e moral, não havendo direito
subjetivo de contra ela agir com violência”.
Se o adultério não é punido com a morte pela Lei Judaica,
porque não existe o Templo e cohanim para julgarem; e se a Lei brasileira não
prevê punição nas relações conjugais, ou consequências penais; então a traição
entre marido e mulher está liberada?
Se não existe sanção legal ao adultério, então sua proibição
deixa de ter sentido? Os motivos que dão origem ao comando de fidelidade
conjugal não existem mais? Não são relevantes?
O Rabino Samson R. Hirsch observa que a proibição ao
adultério tem relação com o “(...) mandamento de ‘frutificai, multiplicai’
(Bereshit 2:15), que é o propósito mais sublime da vida conjugal. Esse
propósito santifica a vida conjugal e promove a construção moral da humanidade,
e é a condição fundamental para a santidade da vida conjugal. Aquele que se
deita com a mulher de seu companheiro mina o fundamento moral da humanidade”.
Realmente, uma das questões subjetivas ao adultério é a
paternidade dos filhos. Também são sensíveis os aspectos quanto à fidelidade,
ao sentimento de ser proprietário do outro cônjuge, ao ciúmes, divisão de bens
comuns, dever de sustentar, entre outros.
Hoffman, citado pelo Rabino W. Gunther Plaut, entende que a
proibição ao adultério se aplica a toda a humanidade, porque Deus requer de
todos um nível básico de moralidade sexual. Lembrando que a proibição ao
adultério é listada como uma das Sete Leis de Noé, válidas para todos os seres
humanos.
Para finalizar, vamos encontrar uma sábia e ponderada
sugestão de como lidar contemporaneamente com a questão do adultério nos
ensaios do Rabino W. Gunther Plaut, que analisa as regras judaicas acerca das
relações sexuais de casados com pessoas que não sejam seus cônjuges: “o balanço
total é positivo em termos de estabilidade, bem-estar da criança e transmissão
de padrões morais e sociais. À luz desses resultados, mesmo os mais críticos
das normas tradicionais de moralidade sexual serão bem aconselhados a examiná-las
cuidadosamente, antes de rejeitá-las como ultrapassadas” (A Torá, Um Comentário
Moderno, p. 787).
Excelente!!! Noções muito importantes para que as famílias tradicionais sejam respeitadas e ESTIMULADAS.
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