Quem é judeu?
O
que é ser judeu? O que quer dizer que somos judeus? O que vem a ser o judaísmo
e os judeus? Afinal, o judaísmo é apenas um aspecto de nossas vidas? E por fim,
acredito que o mais importante: quando você é chamado ou se reconhece como
judeu, de que tipo de comunidade você deseja fazer parte (construir)?
Um
poeta em idish escreveu: “...ser judeu é correr sempre para D-us, mesmo sendo
alguém que foge dele; é esperar ouvir a trombeta de D-us em qualquer dia, mesmo
sendo ateu. É esperar ouvir a trombeta do Mashiach em qualquer dia, mesmo que
se seja ateu. Ser judeu significa não poder abandonar a D-us, mesmo que se
queira; significa não conseguir deixar de (lhe) rezar para ele, mesmo depois de
todas as orações, sejam estas as da noite e mesmo depois de todas as da tarde...”[1]
Há
quem afirme que o sentimento de pertencimento do ser humano, do indivíduo a um
grupo ou a uma comunidade, se constitui a partir de três aspectos principais: a
pátria, a língua e seus costumes (cultura). No entanto, realmente, o que faz
com que se pertença a uma nação? O que faz que um indivíduo tenha uma realidade
autónoma na alma e na vida, mas se sinta integrado a um Povo? O que é que faz o
indivíduo se sentir parte de seu povo? O
que é que faz não apenas que o seu Povo esteja à sua volta, mas também dentro
de si mesmo? [2]
Todas
são questões feitas por Martin Buber na década de 1920 e que ainda são válidas
em nossos tempos e para o Estado de Israel. E ainda, acrescentaria, em vista
aos acontecimentos das últimas semanas em Israel e no Mundo, aos ataques a
minorias e à democracia. Tais fatos me trouxeram angústia sobre o papel das
democracias na segurança, no que é “Ser
Judeu”.
Qual
é o preço de se viver em uma democracia e em uma sociedade diversa? Estamos
dispostos a pagá-lo? Aqueles que estão no topo da cadeia destas sociedades se
incomodam com os direitos das minorias? E as minorias em uma democracia devem
se curvar à maioria? O que tem a ver democracia com a identidade coletiva e com
a individual?
Buber
ainda nos conta, para explicar o sentimento de pertencimento, que o ser humano
em seu processo de descoberta de seu mundo repete em um nível superior os
mesmos processos desenvolvidos por uma criança ao longo de sua vida. Em
primeiro lugar, percebe seu pequeno entorno, posteriormente de forma lenta e
gradativa, seu EU.
Assim
nos comportamos, ao longo de nossa jornada em nossas vidas, na compreensão de nossa
relação com a comunidade em que atuamos. Nos descobrimos indivíduos autônomos, nos
expressamos, experimentamos, nos integramos e desta forma podemos criar junto à
nossa comunidade. Deste modo, descobrimos nosso entorno a partir dos aspectos
emocionais e experiências pessoais, nos perguntamos quem somos e como nos
inserimos na comunidade.
Martin Buber |
Continua
Buber, “não nos sentimos apenas indivíduos particulares, se não que cada
um sente-se ser o Povo e sente em si mesmo o Povo” [3]. Deste modo, o passado
judaico faz parte de nós, não nos compadecemos do sofrimento das gerações
passadas, mas sim, conhecemos este sofrimento porque é nosso. Reconhecemos o
sofrimento e, ao reconhecê-lo, buscamos corrigir o presente e garantir um
futuro melhor às gerações vindouras.
O
judaísmo é também, e não apenas, um conjunto de
ideias básicas de disciplina para a alma e para o corpo, provando que não se
termina aqui. A Torá marca uma jornada como bússola e um manual de instruções
para nossas vidas pessoais e comunitária. O judaísmo é plural e ético ao considerar
todas as opiniões e perguntas de gerações passadas, presentes e refletir o futuro...
e aqueles que não compreendem e não aceitam esta realidade diversa, é porque
não compreendem o judaísmo plenamente. “O judaísmo não é preto e
branco. É um arco-íris de cores”.[4]
O
ser judeu é uma multiplicidade de dimensões que incluem e vão além do nacional,
do linguístico, do religioso e do ideológico. Se desdobra num fascinante conjunto
cultural e social que, apesar da sua diversidade,
apresenta características e valores comuns, constituindo e refletindo uma
civilização.
Sim,
como afirma Mordecai Kaplan, “o judaísmo como civilização é uma
finalidade em si mesma”[5]. E o judaísmo como
civilização floresce com os princípios de liberdade, igualdade e democracia, princípios
que estão em nosso DNA como Povo. Para
mencionar apenas um exemplo: a garantia dos
direitos das minorias. Em Pessach lembramos de
quando éramos escravos e o respeito ao estrangeiro que vive entre nós.
A
diversidade judaica é reconhecida por todos: há judeus europeus, asiáticos,
árabes, africanos, brancos e negros. A multiplicidade faz parte de Israel,
mesmo com seus desafios de convívio, o que demostra até hoje o desejo de estabelecer
uma sociedade eclética. Numa grande parte, esta característica eclética é fruto
da Lei de Retorno, vitória de netos(as) de judeus e de judeus conversos que foram
aceitos de igual para igual, na fundação de princípios básicos de civilidade e
convívio sociais.
E
Israel, refletindo um sintoma mundial, não está imune ao vírus da intolerância
e dos extremismos ideológicos que assolam o Mundo. Porque Israel, desde de sua
criação, acolheu toda a diversidade judaica conhecida. Mas vale lembrar que não
se trata de apoiar ou não o Estado Israel, isto não está em questão. Nosso
apoio a Israel é incondicional. Se trata da defesa dos direitos e garantias
individuais e coletivos de milhões de judeus, e de não transformar um Estado
laico em teocrático.
Nossos
sábios ensinam que “tal como os rostos dos seres humanos diferem uns dos
outros, o mesmo acontece com as suas convicções, também são diferentes. E tal
como você pode tolerar um rosto diferente do seu, deve respeitar as opiniões de
pessoas que pensam de forma diferente de você.” [6]
[1] Arn Tzeitlin - Poeta de
língua idish de raiz chassídica (Rússia Branca 1889 - Nova York / 1973).
Tradução livre realizada pelo autor do artigo.
[2] Trecho retirado do
artigo “El Judaísmo y Los Judíos”, Martin Buber (1923) do libro “Über das
Judentum”.
[3] “El
Judaísmo y La Humanidad”, Martin Buber (1923).
[4] Rabina Irina Gritsevskaya - Diretor da Midreshet Schechter Ucrânia
[5] Mordecai M. Kaplan, em “La
Civilización de Israel em la Vida Moderna”, Israel 1944.
[6] Rabi de Kotzk – Lider do
movimento chassídico Bilgoray, Polonia (1787/1859).