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quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Editorial - SER JUDEU

 

Quem é judeu?

O que é ser judeu? O que quer dizer que somos judeus? O que vem a ser o judaísmo e os judeus? Afinal, o judaísmo é apenas um aspecto de nossas vidas? E por fim, acredito que o mais importante: quando você é chamado ou se reconhece como judeu, de que tipo de comunidade você deseja fazer parte (construir)?

Um poeta em idish escreveu: “...ser judeu é correr sempre para D-us, mesmo sendo alguém que foge dele; é esperar ouvir a trombeta de D-us em qualquer dia, mesmo sendo ateu. É esperar ouvir a trombeta do Mashiach em qualquer dia, mesmo que se seja ateu. Ser judeu significa não poder abandonar a D-us, mesmo que se queira; significa não conseguir deixar de (lhe) rezar para ele, mesmo depois de todas as orações, sejam estas as da noite e mesmo depois de todas as da tarde...”[1]

Há quem afirme que o sentimento de pertencimento do ser humano, do indivíduo a um grupo ou a uma comunidade, se constitui a partir de três aspectos principais: a pátria, a língua e seus costumes (cultura). No entanto, realmente, o que faz com que se pertença a uma nação? O que faz que um indivíduo tenha uma realidade autónoma na alma e na vida, mas se sinta integrado a um Povo? O que é que faz o indivíduo se sentir parte de seu povo?  O que é que faz não apenas que o seu Povo esteja à sua volta, mas também dentro de si mesmo? [2]

Todas são questões feitas por Martin Buber na década de 1920 e que ainda são válidas em nossos tempos e para o Estado de Israel. E ainda, acrescentaria, em vista aos acontecimentos das últimas semanas em Israel e no Mundo, aos ataques a minorias e à democracia. Tais fatos me trouxeram angústia sobre o papel das democracias na segurança, no que é “Ser Judeu”.

Qual é o preço de se viver em uma democracia e em uma sociedade diversa? Estamos dispostos a pagá-lo? Aqueles que estão no topo da cadeia destas sociedades se incomodam com os direitos das minorias? E as minorias em uma democracia devem se curvar à maioria? O que tem a ver democracia com a identidade coletiva e com a individual?  

Buber ainda nos conta, para explicar o sentimento de pertencimento, que o ser humano em seu processo de descoberta de seu mundo repete em um nível superior os mesmos processos desenvolvidos por uma criança ao longo de sua vida. Em primeiro lugar, percebe seu pequeno entorno, posteriormente de forma lenta e gradativa, seu EU.

Assim nos comportamos, ao longo de nossa jornada em nossas vidas, na compreensão de nossa relação com a comunidade em que atuamos. Nos descobrimos indivíduos autônomos, nos expressamos, experimentamos, nos integramos e desta forma podemos criar junto à nossa comunidade. Deste modo, descobrimos nosso entorno a partir dos aspectos emocionais e experiências pessoais, nos perguntamos quem somos e como nos inserimos na comunidade.

 

 

Martin Buber

 

Continua Buber, “não nos sentimos apenas indivíduos particulares, se não que cada um sente-se ser o Povo e sente em si mesmo o Povo” [3]. Deste modo, o passado judaico faz parte de nós, não nos compadecemos do sofrimento das gerações passadas, mas sim, conhecemos este sofrimento porque é nosso. Reconhecemos o sofrimento e, ao reconhecê-lo, buscamos corrigir o presente e garantir um futuro melhor às gerações vindouras.

O judaísmo é também, e não apenas, um conjunto de ideias básicas de disciplina para a alma e para o corpo, provando que não se termina aqui. A Torá marca uma jornada como bússola e um manual de instruções para nossas vidas pessoais e comunitária. O judaísmo é plural e ético ao considerar todas as opiniões e perguntas de gerações passadas, presentes e refletir o futuro... e aqueles que não compreendem e não aceitam esta realidade diversa, é porque não compreendem o judaísmo plenamente. “O judaísmo não é preto e branco. É um arco-íris de cores”.[4]

O ser judeu é uma multiplicidade de dimensões que incluem e vão além do nacional, do linguístico, do religioso e do ideológico. Se desdobra num fascinante conjunto cultural e social que, apesar da sua diversidade, apresenta características e valores comuns, constituindo e refletindo uma civilização.

Sim, como afirma Mordecai Kaplan, o judaísmo como civilização é uma finalidade em si mesma[5]. E o judaísmo como civilização floresce com os princípios de liberdade, igualdade e democracia, princípios que estão em nosso DNA como Povo.  Para mencionar apenas um exemplo: a garantia dos direitos das minorias. Em Pessach lembramos de quando éramos escravos e o respeito ao estrangeiro que vive entre nós.

A diversidade judaica é reconhecida por todos: há judeus europeus, asiáticos, árabes, africanos, brancos e negros. A multiplicidade faz parte de Israel, mesmo com seus desafios de convívio, o que demostra até hoje o desejo de estabelecer uma sociedade eclética. Numa grande parte, esta característica eclética é fruto da Lei de Retorno, vitória de netos(as) de judeus e de judeus conversos que foram aceitos de igual para igual, na fundação de princípios básicos de civilidade e convívio sociais.

E Israel, refletindo um sintoma mundial, não está imune ao vírus da intolerância e dos extremismos ideológicos que assolam o Mundo. Porque Israel, desde de sua criação, acolheu toda a diversidade judaica conhecida. Mas vale lembrar que não se trata de apoiar ou não o Estado Israel, isto não está em questão. Nosso apoio a Israel é incondicional. Se trata da defesa dos direitos e garantias individuais e coletivos de milhões de judeus, e de não transformar um Estado laico em teocrático.

Nossos sábios ensinam que “tal como os rostos dos seres humanos diferem uns dos outros, o mesmo acontece com as suas convicções, também são diferentes. E tal como você pode tolerar um rosto diferente do seu, deve respeitar as opiniões de pessoas que pensam de forma diferente de você.[6]



Marcelo Cardoso



[1] Arn Tzeitlin - Poeta de língua idish de raiz chassídica (Rússia Branca 1889 - Nova York / 1973). Tradução livre realizada pelo autor do artigo.

[2]  Trecho retirado do artigo “El Judaísmo y Los Judíos”, Martin Buber (1923) do libro “Über das Judentum”.

[3] El Judaísmo y La Humanidad”, Martin Buber (1923).

[4] Rabina Irina Gritsevskaya - Diretor da Midreshet Schechter Ucrânia

[5] Mordecai M. Kaplan, em “La Civilización de Israel em la Vida Moderna”, Israel 1944.

[6] Rabi de Kotzk – Lider do movimento chassídico Bilgoray, Polonia (1787/1859).

 

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