Por Dr Simon Benabou
Certamente não é a primeira vez que ouvem que
a história do povo judeu é única no mundo. Na verdade, se alguém tivesse
escrito uma História fictícia do futuro do mundo, cerca de 3.000 anos atrás, e
incluído nessa história a história real do povo judeu, isso seria considerado ridiculamente
impossível. É muito inacreditável para alguém levar isso a sério. Três mil anos
atrás era uma época em que não havia história como a conhecemos hoje: qualquer
registro do passado vinha na forma de histórias tribais que geralmente eram
transmitidas no boca-a-boca, histórias orais. Essas histórias tribais
simplesmente registravam as importantes genealogias da tribo de uma geração
para a seguinte e grandes eventos, como uma guerra ou uma migração. Tinha que
haver referências copiosas a quaisquer divindades que a tribo adorasse, pois
eram consideradas a fonte de tudo o que acontecia na vida naquela época. Enfim,
acontece que houve uma tal história tribal escrita há cerca de três mil anos que
tratava quase exclusivamente dos ancestrais do povo judeu, dos hebreus e dos
israelitas. Esta história tribal é chamada de Torá. Apesar de ser o alicerce da
identidade de toda uma nação, na sua essência é realmente uma história tribal,
afinal tudo começa com uma única pessoa, Avraham, e a pequena tribo de hebreus
que se reuniu ao seu redor.
O crescimento dessa tribo de quase
inexistente para se tornar massivamente grande ocorreu durante um período de
cerca de 200 anos, enquanto a tribo estava localizada no Egito, longe de sua
pátria escolhida. Se este livro de história imaginário foi escrito durante
esses 200 anos, simplesmente não há chance de que ele ousasse prever o que
eventualmente aconteceu. A crescente tribo foi escravizada. Durante a maior
parte desse tempo, seu futuro estava fadado à obscuridade ou à aniquilação
total. No entanto, emergiu dessa situação desesperadora não apenas livre para
forjar seu próprio destino, mas prometendo um destino que era glorioso demais
para ser imaginado. Tornou-se uma grande nação, os Israelitas. E foi unificada
sob um sistema de crenças que mudaria o mundo de maneiras que reverberam até
hoje. Quem teria acreditado que a crença desta nação em um Deus, em oposição às
muitas divindades que todos os outros adoravam naquela época, acabaria
ressoando com cerca de metade da população do mundo que adotaria essa crença
para se adequar às suas próprias situações culturais? Quem teria acreditado que
esse enorme grupo de escravos se tornaria uma das principais nações do antigo
Oriente Médio, cuja fama e influência sobreviveriam por muito tempo a seus
rivais mais poderosos, como os egípcios, os babilônios e os assírios?
E isso é exatamente o que aconteceu na
história real. Por mais surpreendente que possa parecer, quando a história
improvável dos israelitas efetivamente terminou, a história ainda mais
improvável de seus herdeiros começou. Os israelitas foram para o exílio em
massa por volta de 2.600 anos atrás, em duas etapas com cerca de 150 ou mais
anos de diferença. Ambos os grupos foram exilados para terras a leste do antigo
Israel. Quando esse tipo de coisa aconteceu a uma nação prévia, sempre significou
o fim dessa nação, mas por algum motivo, que ninguém poderia ter previsto, isso
não aconteceu na segunda etapa desse exílio. Esses israelitas, agora conhecidos
como judeus, visto que em grande parte vieram da tribo de Judá, mantiveram suas
crenças e sua identidade como nação. Uma pequena porcentagem voltou para sua
terra natal dentro de mais um século. Este grupo, embora enfrentando grandes
chances de insucesso, sobreviveu além de qualquer expectativa razoável. Eles se
juntaram ao longo dos séculos por muitos de seus companheiros exilados de todo
o mundo antigo e por outros que de alguma forma se tornaram parte do povo
judeu. Eles reconstruíram seu templo central destruído e recriaram sua religião
de uma forma que manteve seus antigos rituais e crenças bíblicas, ao mesmo
tempo em que começaram a assumir uma estrutura que eventualmente se tornaria o
que hoje conhecemos como judaísmo. As primeiras raízes do judaísmo rabínico, o
judaísmo com o qual os judeus estão mais familiarizados do que seu ancestral
bíblico, nasceram durante esses séculos. Mas tão improvável quanto esse
renascimento, ainda mais improvável era uma segunda rodada de derrota e exílio,
desta vez nas mãos dos romanos. Este exílio viria a ser mais permanente do que
o primeiro. Durou um período inédito de quase 2.000 anos. As nações
simplesmente não sobrevivem tanto tempo no exílio. Elas desaparecem nas terras
para as quais foram exiladas, para nunca mais serem ouvidas.
Mas
por alguma razão, isso não pode ser explicado racionalmente.
Os judeus se recusaram a seguir esse caminho.
Eles preservaram sua identidade coletiva no exílio, permanecendo judeus, quase
como se alguma força do destino estivesse guiando as coisas para que eles
também estivessem lá como uma relíquia guardada em um baú de família. Por que
eles fizeram isso? Por que as nações em que eles viveram toleraram isso?
Ninguém sabe. Mas continua sendo pra mim um dos maiores mistérios da história
coletiva do mundo. Este exílio prolongado nos levou a todas as partes do mundo.
Os judeus migraram para todos os continentes povoados, espalhando-se da China à
Califórnia, do extremo norte da Rússia até o extremo da América do Sul e da
África. Onde quer que eles fossem, eles carregavam sua singularidade. Eles
circuncidavam seus bebês do sexo masculino, um costume provavelmente tão antigo
quanto qualquer outro no mundo, exceto o enterro dos mortos. Eles estudaram e
reverenciaram seus livros sagrados, incluindo a Torá, que contou e predisse
esta história inacreditável. Eles guardavam para si mesmos suas leis de
casamento e normas sexuais, suas restrições alimentares e altos padrões de
moralidade. Eles rezavam para o seu único Deus constantemente descobrindo novas
maneiras de imaginar o que Deus fosse. E pagaram um preço altíssimo pela insistência
em manter sua identidade. O sofrimento por sua fé tornou-se um cartão de visita
para ser judeu. Podia acontecer em qualquer lugar e a qualquer hora, fossem
conversões forçadas, castigos em praças públicas, exílios periódicos ou
assassinatos em massa. Os judeus tiveram que suportar tudo simplesmente porque
queriam ser judeus.
Quando a intolerância atingiu um auge com o
Holocausto, o mundo teria boas razões para acreditar que os judeus finalmente
desistiriam de sua identidade e perceberiam que tudo era inútil. Mas eles não o
fizeram. As sementes já foram plantadas para outro renascimento na antiga Eretz
Israel. Não foi fácil e ainda não é fácil. Mas está acontecendo. É a nação de
Israel recriada do pó do deserto e dos ossos de milhões de mártires. Qual
profeta poderia ter predito isso há 2.000 anos, quando começou aquele longo
exílio? Qual vidente poderia ter visto o que estava por vir mil anos atrás,
quando a terra de Israel estava vazia de judeus e quase vazia de vida? Alguém,
judeu ou não, poderia ter visto o destino impossível dos judeus na terra de
Israel, ainda no ano de 1900? Se alguém sugerisse tal profecia em qualquer
momento anterior à formação do estado moderno de Israel, eles teriam sido
ridicularizados sonhadores ou fraudes. Mesmo para os judeus, não passava de uma
oração desesperada que eles faziam para manter vivas as esperanças uns dos
outros. Em todo Pessach, “Leshana habaa b’Yerushalayim”, “no ano que vem em
Israel”. E aqui estamos há 75 anos.
Vivenciamos recentemente dois dias
comemorativos que o Estado de Israel consagrou como parte da nova nação. Há
algumas semanas, observamos o Dia do Holocausto de Yom Hashoah. Embora muitos
possam questionar a sabedoria de comemorar um período tão horrível da história
humana para os judeus, é nada menos que um símbolo de fé e perseverança mais do
que qualquer outra coisa na história judaica. Representa o traço judaico inato
de nunca desistir. É triste e sempre trará de volta memórias terríveis. Mas é
tão judaico quanto a língua hebraica. Na última semana tivemos a comemoração
consecutiva e a celebração de Yom Hazikaron e Yom Ha'atzmaut, o Dia Memorial de
Israel e o Dia da Independência. O primeiro lembra aqueles que morreram nas
muitas guerras e ataques terroristas que Israel sofreu em seu esforço para
realizar esse sonho impossível. Uma porcentagem surpreendentemente considerável
de famílias em Israel passa por um dia pessoal de luto ao se lembrar daqueles
que perderam. As nações inteiras choram com eles, mas também celebram pelo que
eles deram suas vidas. Isso leva direto para a celebração cada vez maior e
contenciosa de Yom Ha'atzmaut. Embora não haja fim para a quantidade de
problemas que Israel enfrenta e continuará a enfrentar no futuro próximo,
também há muito o que comemorar ao relembrar o milagre moderno desta nação
antiga.
A justaposição desses dias, sempre com cerca
de uma semana de diferença, é, de certo modo, a história do povo judeu. Os
judeus são Abraão e Sara vagando pelos desertos do antigo Oriente Médio em
busca de uma terra prometida a eles por seu único Deus. Lá, Moshe e os
israelitas vivenciam o êxodo e recebem a Torá no Monte Sinai. Eles são profetas
e reis, fazendeiros trabalhando na terra e suas esposas tirando água dos poços.
Eles são exilados deixando sua terra, mas prometendo nunca esquecê-la. Eles são
rabinos e parteiras para surfistas e místicos, artistas e cientistas, crentes
ferrenhos em sua religião e questionadores implacáveis de sua religião. Eles
são aqueles que caminharam até as câmaras de gás e aqueles que caminharam,
navegaram ou voaram para sua pátria coletiva enquanto passavam por este
estranho e muito judaico rito de aliya. Chegando para se estabelecer em Israel.
Talvez seja uma necessidade do destino judaico que esses dias cheguem nesta
época do ano. Acabamos de ter o Pessach celebrando a fundação da nação
israelita e judaica. Durante as semanas seguintes, contamos os dias do Omer até
Shavuot. Simplesmente tinha que ser o destino que os judeus comemorassem a
impossibilidade de um holocausto que matou 6 milhões em poucos anos e o
igualmente impossível renascimento da nação alguns anos depois. Nada mais
serviria para esta nação de impossibilidades. Pois não é algo que surge
naturalmente no curso da história. Há 75 anos o deserto floresce em Eretz
Israel. Que possamos nos inspirar na resiliência de nossos antepassados para
continuar, com democracia, fazendo de Israel e o povo Judeu uma luz entre as
nações do mundo.