No final do mês de julho terá início a II Mostra de Cinema Israelense realizada pelo IBI (Instituto Brasil Israel) e pelo SESC São Paulo. Além de uma exibição presencial na abertura da Mostra, os filmes serão disponibilizadosna plataforma digital do SESC. Neste ano, o eixo curatorial adotado foi sobre mulheres diretoras e além disso, eu, que sou o curador e produtor da Mostra, sugeri que fizéssemos uma homenagem à grande atriz e diretora israelense Ronit Elkabetz precocemente falecida. Aproveito este espaço para já comentar sobre 2 filmes que lá estarão. Ambos os filmes, de maneiras muito diferentes, abordam não o Holocausto em si, mas especialmente os reflexos nos filhos e netos de sobreviventes. Mas, antes de falar sobre os filmes propriamente ditos, faço um pouco de apanhado de como a sociedade israelense lidou com a questão. A Shoá é o centro de um conjunto de narrativas históricas que tem como objetivo estimular lealdades étnicas de forma a tornar-se parte dos mitos fundadores e suporte do imaginário coletivo do país e dos judeus que não vivem em Israel. A partir disso, se converte em memória nacional institucionalizada chegando a ser um elemento essencial na identidade de Israel, na sua cultura e na vida política. No entanto, no ideário sionista inicial, a nova sociedade judaica na Palestina se enxergava de maneira muito diferente frente a velha e degradada sociedade na Diáspora. Assim, os sobreviventes da Shoá são vistos com desconfiança, símbolos de uma sociedade covarde e sem iniciativa (ou por vezes acusados também de cometer atos “imorais” para sobreviver) e resultado disso é o silenciamento desta geração, onde filhos e netos não compartilham das memórias e do sofrimento passado.
Este quadro começa a mudar especialmente com o julgamento de
Eichmann em 1961, onde pela primeira vez, os sobreviventes adquirem voz e podem
testemunhar pela televisão todo o horror que sofreram. Paralelamente, as
reparações alemãs aos sobreviventes, os tornam elementos com relevância econômica
na jovem sociedade israelense. As complexidades dos dilemas judaicos e a
dificuldade de resistir aos nazistas tomam corpo e ressonância. Some-se ao
quadro o medo de aniquilação de Israel pelos países árabes pré-1967 e imagens
de prisioneiros israelenses na guerra de 1973. Todos esses elementos acabam por
quebrar a narrativa sionista anterior. A memória passa a ser personalizada,
onde cada pessoa, cada vítima tem um nome e tem uma história pessoal para
contar. Nesse quadro, a 2ª. geração e a 3ª. geração passam a utilizar a arte
como instrumento de compreensão e relação com pais e avós.
Vamos aos filmes.
Kiss Me Kosher é um filme alemão-israelense do ano de 2020,
dirigido e roteirizado por Shirel Peleg, nascida na Venezuela, criada em Israel
e residente na Alemanha. A história é baseada na história de amor da vida real
de Peleg e sua parceira e é o primeiro longa-metragem de Peleg como diretora.
O filme é sobre uma mulher israelense chamada Shira
(interpretada por Moran Rosenblat) e uma alemã chamada Maria (interpretada por
Luise Wolfram), que por meio de um mal-entendido inicial ficam noivas para se
casar em Jerusalém. A avó de Shira, Berta (interpretada por Rivka Michaeli)
tenta impedir isso. Kiss Me Kosher estreou nos cinemas alemães em 10 de
setembro de 2020 e desde então, tem se apresentado em vários festivais
internacionais de cinema.
"Kiss me Kosher" é uma comédia que aborda uma
série de questões complexas e sensíveis. A avó de Shira, Berta, sobrevivente do
Holocausto, está secretamente envolvida com seu vizinho árabe-palestino,
Ibrahim, o que causa tensões e críticas em relação à escolha da noiva por
Shira. Esta abordagem cômica desvela vários aspectos sobre as diversas
identidades coexistentes das protagonistas, como suas identidades intersecionadas:
mulheres, homossexuais, alemã, israelense, judia e não judia, sobrevivente do
holocausto e palestino em Israel. Num tom cômico e delicado, o filme ancora-se
no amor e no humor, mesmo enquanto explora as complexidades e as sombras
presentes nas discussões em torno do Holocausto. Em última análise, o filme é
uma jornada de reconciliação com o passado.
O outro filme chama-se Holyholocaust onde um obscuro segredo
familiar do passado é revelado inesperadamente e abre um abismo entre duas
amigas íntimas: Jennifer, uma alemã negra, descobre que é neta de um notório comandante
nazista, e sua vida vira de cabeça para baixo, enquanto Noa, uma israelense,
está fazendo o que pode para evitar que sua vida mude. Dirigido por Noa
Berman-Herzberg e OsiWald, esta é uma animação que trafega por
intersecionalidades identitárias na paisagem de constantes conflitos da
sociedade israelense. É uma animação de curta-metragem com trilha sonora de
Daniela Spector e que também, a exemplo de Kiss Me Kosher trafega sobre
memórias e identidades quebradas e como os encontros entre mundos tão
diferentes acabam por encontrar (ou não) caminhos de relacionamento.
Estes dois filmes, com linguagens cinematográficas tão
diferentes, acabam por conversar entre si ao trazer vidas que acabam por ser
afetadas por memórias e traumas do passado. Não percam estes filmes na II
Mostra IBI-SESC de Cinema Israelense.
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