Orelhas de H...
Num
dia como hoje, com as águas de março que fecham o verão, fui visitar o risonho
seu Isaque e a prestimosa dona Débora.
Era
um casal já idoso, cujos filhos tinham ido estudar e acabaram escolhendo morar
em terra estrangeira. Para lembrar deles, bebiam pelas manhãs, antes do Sol
nascer, um leite bem quente adoçado com o melhor mel do Vale.
É...
Eles produziam mel... Não eles, lógico! Criavam abelhas, e delas extraíam o
mais puro e cheiroso visco dourado de toda região... Diziam que a voz de dona
Débora era tão bonita por causa dele...
Ao
cair da tarde, depois da lida diária, ele tocava uma clarineta que herdara de
seu avô, e ela cantava... Era um pássaro! Um bem-te-vi com aquele coletinho
amarelo que canta, feliz, ao anunciar a boa água que cai do céu.
Seu
Isaque era um piadista gozador: adorava os causos da roça. Contava um atrás do
outro, e, às vezes, dona Débora ralhava em tom de brincadeira. Uma das
preferidas dele era falar dos filhos que trocaram a paz, a água e a fartura por
um deserto de segurança e riqueza. Era um jeito carinhoso de mostrar todas as
suas saudades e todo o seu gosto pelo caminho que eles escolheram.
“Fio
é prá voá!”, falava ele, e ria...
De
repente, apitou o celular. Era o alarme, contando que dona Débora já podia
retirar os biscoitinhos bem perfumados do forno. “Saíram as orelhas de H...”,
nessa hora ela foi interrompida por uma revoada de maritacas que, fazendo
aquela algazarra, tinha pousado na árvore em frente.
“Vem
ver meus canarinho verde! Eles sempre vêm essa hora pra cumê e durmi. Eu ponho
aguinha, deixo tudo certinho pra eles! Quando eles se recolhe, já falo pro véio
que é nossa hora também... Mas eu ia falando da orelhas de H...”
PAAPAA! PRAAA! RECO! TEC!
“Corre
aqui gente!”, interrompeu, mais uma vez, seu Isaque! “Achei a matraca que meu pai fez pra mim! Procurei em tudo quanto é canto! Que nó nos gargomilo...”
chorava o idoso roceiro.
“Fica
assim não, véio! Vem pra mesa. Nóis vamo cumê uns biscoitinho e tumá leite com
mel... Vem conversá com as visita qu´ocê miora!”
Já
na mesa, sentado e mais calmo, ele começou a contar a história da matraca, dos
biscoitos, do leite e do mel...
“Os antigo contava que tudo aqui era uma
fazenda só! Aqui, nessas roça, o povo era tudo colono... O dono, fazendeiro,
era bom. Mas tinha um padre que morava com ele que era ruim que só o tinhoso!
Esse padre chamava H...”
RRÁ! RRÁ! RRÁ! A festa das maritacas, mais
uma vez, impediu seu Isaque de prosseguir... Depois, tudo acalmado, ele
continuou.
“Então... Nessas roça vivia um estrangeiro
véio que chamava Mordechai. Que nome! Coisa de gente de fora... Nem é
brasileiro isso... Ele era tipo o sábio daqui da colônia: sabia tudo! Tempo das
chuva, da seca, da plantação, da criação... Tudo!
Ele tinha uma neta muito formosa, a Esther!
Os home tudo da aldeia queria casá cum ela! Dizem que até aquele padreco de
festa junina quiria... Foi pur isso que ele armô tudo...
Convenceu o fazendeiro de que ele tinha de
plantá só café. Toda gente ia sê tocada daqui... Tudo ia sê cafezá! Falô que
mió que isso, só Jesus Cristo! E todo mundo? Ia fazê o que? De certo, morrê!
Diacho de padre!
Mas acontece que o fazendeiro, um dia,
resolveu passeá de cavalo, e avistô a Esther na bera do córgo lavando roupa.
Apaxonô!
Mordechai viu isso tudo e começô a matutá um
plano! Juntô todo mundo e foi dividindo as lida! Deu tudo do bom e do mió pra
cada um. Um colono ia plantá fruta e a muié ia fazê compota! O outro, verdura.
Mais um, beterraba e a muié ia fazê a mió sopa!
Ele escolheu criá abelha. Ia fazê mel! É que
o mais gostoso é o mel feito com abelha livre pra cumê o que quisé!
Logo, essas banda viraram uma festa danada!
Tudo daqui era bom, o mió!
Mas o plano ainda tava pela metade! Mordechai
aproveitou uma ida do padre pra paróquia central e ajeitou o casamento dela com
o fazendeiro. Aos poucos, ela convenceu ele a deixá o café de lado e aproveitá
mió nossos produto...
Quando o padreco voltô, nada mais tinha a
fazê! Pediu pra ir pra Capitá!
É por isso que esses biscoito chamam orelha
de H...”
MÉ! GRÉ! PPRR!, se alarmaram os bichos da
roça... Devem ter visto um Saci!
“É pra gente cumê contando essa história.
Assim aquele dito cujo ouve bem, sempre, e vê se aprende que o povo unido vale
mais do que qualqué saca de café! É por isso que meu pai me fez aquela matraca!
Pra eu fazer muito barulho e espantar aquele nome maldito daqui...
H...”
TRRR! TRRRR!, os trovões anunciavam que o
toró se aproximava!
“Mas hoje... Hoje... Nem da minha matraca
precisei! O mundo já falô!”
André Naves
Defensor Público Federal, especialista em Direitos Humanos, Inclusão Social e Economia Política. Escritor e Comendador Cultural.
Boa André! Muito bacana esta mescla!
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