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quinta-feira, 20 de março de 2025

‘Mitzvá Legal’ - Beber até cair

 

Beber até Cair

Por Angelina Mariz de Oliveira


Uma famosa marchinha de Carnaval de 1959 já anunciava a ameaça de beber até não conseguir continuar em pé. Várias outras canções brasileiras têm a famosa frase ‘beber até cair’, normalmente por desilusão amorosa.

A ingestão de álcool é vista na cultura ocidental como algo necessário à alegria, ou para consolar. É elemento indispensável para festas, casamentos, jantares, churrascos etc. No Judaísmo também é essencial o álcool – vinho, vodca etc. - no brit milá, no bar mitzvá, no kidush, e, principalmente, em Purim.

Mas nem sempre o consumo regular de álcool fez parte da cultura Judaica. O texto “Drinking on Purim”, de Josh Finkelstein, traz diversas fontes judaicas, que debatem sobre essa questão (publicado pelo site Sefaria https://www.sefaria.org/sheets/470604.41?lang=bi). A Torá é rica em exemplos de situações reprováveis decorrentes da embriaguez.

Logo no Capítulo 9 de Bereshit lemos sobre um Noah desgostoso com a destruição do mundo, embriagado e nú perante sua família. Algumas gerações depois, as filhas de Lot vão embriagá-lo para ter relações sexuais e engravidar do pai (Bereshit 19:33).

Itzchak também é levado à embriaguez por seu filho Iaacov. Com isso, não consegue diferenciar o filho caçula de Esaú, seu irmão mais velho (Bereshit 27:25).

Séculos depois, após a fuga do Faraó, os hebreus estão aos pés do Monte Sinai, onde contribuíram e trabalharam para construir o Mishcan. Logo no serviço de inauguração, os dois filhos mais velhos de Aharon, recém-ungidos como cohanim, são fulminados por um raio Divino.

Após o choque, Deus ensina diretamente a Aharon que durante os serviços no Mishcan não deve ser tomado vinho, nem qualquer tipo de ‘bebida forte’, com teor alcoólico (Vaikrá 10:9).

Desde então, o vinho seria usado apenas para ser derramado nas oferendas.

A repreensão ao uso abusivo de álcool também é condenada em diversos trechos do Tanach. Por exemplo, quando o profeta Eli repreende Channah, pensando que ela estava embriagada (Samuel I 1:14); e as advertências de Isaías contra o “orgulho dos bêbados de Efraim” (Isaías 28:1-8):

“Estes também erraram por causa do vinho e se desviaram por causa do vinho forte; sacerdotes e profetas erraram por causa do vinho forte, eles se corromperam por causa do vinho; eles se desviaram por causa do vinho forte, eles erraram contra o vidente, eles fizeram a justiça tropeçar”.

Com tantas advertências, recriminações e tristes consequências, de onde vem a ideia de que o vinho e outras bebidas alcoólicas são necessárias e recomendáveis para as comemorações?

Moisés, na própria Torá, estabelece que anualmente os hebreus deveriam ir ao Mishcan com suas famílias, para celebrar a produção agropecuária (Devarim 14:26):

“Comerás os dízimos do teu cereal novo, do teu vinho novo, do teu azeite, e das primícias dos teus rebanhos, na presença do teu Deus, no lugar que [Deus] escolher para estabelecer o nome divino, para que aprendas a reverenciar o teu Deus para sempre.

Se a distância for muito grande para você, se você não puder transportá-los, porque o lugar onde seu Deus escolheu para estabelecer o nome divino está longe de você e porque seu Deus o abençoou você pode convertê los em dinheiro. Embrulhe o dinheiro e leve-o com você para o lugar que seu Deus escolheu, e gaste o dinheiro em qualquer coisa que você queira — gado, ovelhas, vinho ou outra bebida inebriante, ou qualquer coisa que você desejar. E você festejará ali, na presença do seu Deus, e se alegrará com a sua casa”.

Também encontramos inúmeras passagens do Tanach que exaltam a alegria e a benção de ter vinho. No Salmo 104 lemos: “(...) o vinho que alegra os corações dos homens”.

Mas a elevação do vinho ao centro destacado das comemorações vai aparecer no exílio na Babilônia, durante o domínio persa de Achashverosh. Este imperador tinha em sua rotina os famosos e típicos ‘banquetes de vinho’ – mishtê haiain, como lemos na Meguilá Esther.

A palavra hebraica ‘mishtê’ costuma ser traduzida como ‘banquete’, mas também significa ‘bebida forte’, com teor alcoólico. Ela tem a mesma raiz do verbo beber (lishtot). Ou seja, é uma celebração essencialmente relacionada à ingestão de álcool.

E esse hábito será adotado pelos judeus. Após a vitória contra Haman, Mordechai envia cartas para todas as comunidades judaicas espalhadas pelo império persa, determinando que Purim seja comemorado por todos, anualmente, e que “deveriam observá-los como dias de festa (iemei mishtê) e alegria (vesimshá), e como uma ocasião para enviar presentes uns aos outros e presentes aos pobres”.

Surgiu então a vinculação de Purim ao consumo de álcool como elemento provocador da alegria. Foram criados rituais e celebrações, que acabaram se transformando em tradição.

Assim, as regras da Torá e Profetas que restringem o uso do álcool foram mitigadas em Purim, para incluir os banquetes de vinho persas. O Talmude, no Tratado de Meguilá, nos conta que Rava, rabino que viveu na Babilônia no século IV da EC, disse: “Uma pessoa é obrigada a ficar embriagada em Purim até que esteja tão embriagada que não saiba distinguir entre o amaldiçoado Haman e o abençoado Mordechai” (Talmud Bavli, Meguilah, 7b).

Existem diversas explicações dos motivos teológicos e místicos para a pessoa ficar tão embriagada, a ponto de não conseguir raciocinar em Purim. Mas vamos dirigir nosso estudo, inspirados pela Torá, pelas consequências na busca de tamanho descontrole.

O Judaísmo do Templo não admitia ingestão de vinho e outras bebidas durante os serviços religiosos, por ser um mandamento de Deus, para evitar atos impensados e inapropriados, que podiam levar à morte. No Judaísmo rabínico o álcool também não será admitido nas tefilot, nas rezas. Porém, no Kidush e na Havdalá, nas celebrações, e em Purim, o vinho e outras bebidas passam a ser elemento central, com forte teor simbólico.

Contudo, sempre esteve presente a preocupação com o uso abusivo do álcool e suas consequências. Nesse mesmo Tratado de Meguilá, logo depois da forte e polêmica afirmação de Rava (Rabino Abba ben Iossef bar Hama), lemos:

“Rabba (bar Nahmani) e Rabi Zeira prepararam uma festa de Purim um com o outro, e ficaram embriagados a ponto de Rabba se levantar e massacrar Rabi Zeira. No dia seguinte, quando ele ficou sóbrio e percebeu o que tinha feito, Rabba pediu misericórdia a Deus e o reanimou. No ano seguinte, Rabba disse a Rabi Zeira: Que o Mestre venha e preparemos a festa de Purim um com o outro. Ele disse a ele: Milagres não acontecem a cada hora, e eu não quero passar por essa experiência novamente”.

Na Idade Média, de modo geral Maimônides será crítico ao alcoolismo. Ele escreveu na Mishnê Torá (1180):

“Quem se embriaga é um pecador, é vergonhoso e perderá sua sabedoria. Se ele se embriaga diante das pessoas comuns, ele profana o Nome de Deus. É proibido beber até mesmo uma pequena quantidade de vinho nas horas da tarde, a menos que seja tomado junto com comida. Bebida que é tomada junto com comida não é intoxicante. Somente vinho que é tomado após a refeição deve ser evitado (...) Ele deve beber vinho até ficar embriagado e adormecer em estupor”.

Porém, quando se trata de Purim, Rambam vai comentar a Meguilá Esther, e conclui que se embriagar em Purim é uma mitzvá, mas que está restrita ao contexto das refeições diurnas de 14 de Adar. E mesmo assim, em acompanhamento das refeições, seguidas de um breve sono.

No século XVI, Rosh vai escrever sobre a obrigação de se embriagar em Purim: “não significa ficar bêbado, pois a embriaguez é uma proibição definitiva, e não há pecado maior do que ela, pois leva ao adultério, assassinato e outros pecados. Em vez disso, deve-se beber um pouco mais do que o normal” (Orach Chaim 695 1:1).

Na mesma época, Rabbi Meiri segui a mesma linha de pensamento, defendendo o uso responsável do álcool em Purim; ao comentar a Meguilá 7b ele defende que “A pessoa é obrigada a aumentar sua alegria neste dia por meio de comida e bebida até que não lhe falte nada. No entanto, não somos ordenados a ficar bêbados e nos degradar devido a essa alegria, pois não fomos ordenados na "alegria" da devassidão e do absurdo, mas sim na alegria do prazer que leva a amar a Deus e a agradecer a Ele pelos milagres que ele fez por nós”.

Também em nossos dias encontramos orientações rabínicas de consumo moderado de álcool em Purim. Por exemplo:

“Se alguém sabe que beber muito vinho faz com que chore e fique deprimido, ou causa dores de cabeça, é preferível que cumpra a mitzvá bebendo um pouco mais do que o normal. Isso ocorre porque o objetivo principal da mitzvá é ser feliz, e se beber deixa alguém triste, ele prejudica a mitzvá... Se alguém sabe que quando fica bêbado fica selvagem e machuca os outros, ou acaba chafurdando em seu próprio vômito e se degradando em público, ele não deve ficar bêbado. Em vez disso, ele deve cumprir a mitzvá bebendo mais do que o normal [...]” (Peninei Halakhah, Zemanim 16:11:4).

E ainda:

“Assim, mesmo de acordo com o Shulchan Aruch, esta mitzvá não se aplica em casos de perigo de vida. De fato, Rav Mordechai Eliyahu e Rav Avigdor Neventzall (citados em Mikra'ei Kodesh, Hilchot Purim, Milu'im, cap. 13, n. 5, de Rav Moshe Harari) proíbem soldados israelenses de ficarem bêbados se tiverem acesso a armas de fogo. É óbvio que, da mesma forma, quem estiver dirigindo após o Seudat Purim deve se abster de beber. Além disso, também é óbvio que é proibido oferecer bebidas alcoólicas a alguém que planeja dirigir em Purim” (Gray Matter IV, Family and Community Matters, The Orthodox Union's Policy Statement on Adolescents Drinking on Purim 7).

Apesar desse debate milenar, e das prudentes recomendações, são comuns na noite de Purim, ou em datas próximas, comemorações com bebidas alcoólicas à vontade, o conhecido ‘open bar’. Em todas as linhas judaicas serão encontrados grupos celebrando Purim de acordo com as palavras talmúdicas de Rava, de 17 séculos atrás.

Essas práticas de uso abusivo das bebidas fortes podem ser fonte de acidentes, violência e abusos. Exatamente como descrito na Torá.

Por isso existem diversas normas no Sistema Jurídico Brasileiro punindo a embriaguez. As normas preveem punição mesmo para um consumo pequeno ou baixo de bebida alcoólica:

Código Penal/1940: “Art. 28 - Não excluem a imputabilidade penal: (...) II - a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos”. Por essa norma, o fato da pessoa estar alcoolizada não é justificativa para a prática de crimes e violências.

Estatuto da Criança e do Adolescente/1990: “Art. 81. É proibida a venda à criança ou ao adolescente de: (...) II - bebidas alcoólicas; Art. 243. Vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar, ainda que gratuitamente, de qualquer forma, a criança ou a adolescente, bebida alcoólica ou, sem justa causa, outros produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica: Pena - detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave”. Com esse comando busca-se proteger os menores de idade, inclusive para casos de acesso de menores a bebidas alcoólicas em festas familiares.

Código de Trânsito Brasileiro/1997: “Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Infração - gravíssima; Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses. Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses. Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses; Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor. Penas - reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.

A legislação brasileira não é rigorosa nas punições de violências relacionadas ao uso de álcool, mesmo que em pequenas quantidades. O que de certa forma contribui para a sensação de impunidade.

Já que o legislador é leniente, cabe á sociedade civil, e às comunidades judaicas, se perguntarem que tipo de educação estímulo e exemplo estamos dando para os jovens. Será que a famosa frase de Rava, sempre lembrada e citada, é a forma judaica mais adequada de comemorar Purim? E a crítica à Rava trazida pelo Talmude logo após sua polêmica fala, seguida de inúmeras orientações rabínicas ao longo dos séculos?

Além dessas questões, o Judaísmo Liberal reconhece o perigo da ingestão abusiva de álcool, que pode levar a um quadro de descontrole, o alcoolismo. Nesse sentido, apesar de ser uma doença, ainda assim existem as responsabilidades da pessoa afetada, a primeira delas é a de procurar tratamento e cuidados.

Talvez desde já possamos iniciar campanhas, atividades e arrecadações para que as próximas celebrações de Purim tenham menos influências dos persas de Achashverosh, e mais consciência das advertências da Torá, e das recomendações de nossos Sábios.

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