Obrigados a viver fechados em pequenos guetos, passando fome e sofrendo perseguições, os judeus marroquinos viram na misteriosa Amazônia uma chance de escapar da insuportável discriminação que enfrentavam. E começaram a migrar em massa logo no começo do século 19. O êxodo continuou por quase todo o século e formou na Amazônia uma comunidade que contava, no fim da década de 1980, com mais de 50 mil descendentes.
Caminho aberto
Os judeus que saíram do Marrocos e vieram para o Brasil tinham origem ibérica. Haviam sido expulsos da Espanha em 1492 e de Portugal quatro anos mais tarde. Banidos do local onde tinham vivido por séculos, espalharam-se por vários cantos do mundo. Um dos lugares escolhidos para a nova morada foi o norte da África.
No Marrocos, eram conhecidos como megorachim – espanhóis exilados sem pátria. Apesar de tudo, alguns conseguiram prosperar, especialmente em cidades como Tânger, Tetuan, Marrakesh, Fez, Agadir e Casablanca. Mesmo assim, os judeus continuavam a sofrer constrangimentos, humilhações e confisco de seus bens – fora os já rotineiros massacres. Doze gerações, durante mais de 300 anos, viveram assim no Marrocos. A situação de extremo desconforto por lá teve papel decisivo na migração metódica e racional dos judeus de Tetuan e de Tânger para o longínquo, misterioso e perigoso Amazonas, no Brasil.
Outro atrativo foi a Carta Régia de 1808, que abria os portos às nações amigas e acabara de inserir o Brasil no comércio internacional, com reflexos imediatos na Europa. O livre comércio criou boas perspectivas para os guetos marroquinos, especialmente em Tetuan e Tânger, cidades portuárias, onde os judeus já estavam envolvidos no comércio de importação e exportação. Além disso, eles falavam espanhol, o que facilitava a comunicação.
Mais ainda: em 1810, foi assinado o Tratado de Aliança e Amizade entre o Reino Unido e o Brasil. Ele autorizava a prática de outras religiões que não a católica, “contanto que as capelas sejam construídas de tal maneira que exteriormente se assemelhem a casa de habitações e também que o uso de sinos não lhes seja permitido”. O tratado assumia o compromisso de que, no futuro, não haveria Inquisição no Brasil. Em 26 de abril de 1821, dom João VI extinguiu finalmente a Santa Inquisição e os Tribunais do Santo Ofício de todo o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Como escreveu Samuel Benchimol, que foi professor da Universidade do Amazonas e pesquisador da floresta, no livro Eretz Israel (“Terra de Israel”): “Estava finalmente aberto o caminho para que os judeus do Marrocos apressassem sua partida do exílio marroquino, que durou mais de 300 anos”. Verdadeira carta de alforria principalmente para os judeus marroquinos de origem ibérica, que viveram durante séculos sob o peso da Inquisição.
Proclamada a República no Brasil, em 1889, o decreto 119 do governo provisório de Deodoro da Fonseca aboliu a união legal da Igreja com o Estado e instituiu o princípio da plena liberdade de culto. Nessa época, os judeus oriundos do Marrocos viviam, na Amazônia, o pleno apogeu do ciclo da borracha – o que serviu para incentivar ainda mais a já contínua migração.
Dos mitos à borracha
A Amazônia era, por excelência, o território dos mitos e das lendas. Em Formação Econômica do Brasil, o intelectual Celso Furtado diz que a economia da região entrara em decadência no fim do século 18: “Desorganizado o engenhoso sistema de exploração da mão-de-obra indígena estruturado pelos jesuítas, a imensa região reverte a um estado de letargia econômica”. O algodão e o arroz tiveram sua etapa de prosperidade durante as guerras napoleônicas, “sem contudo alcançar cifras de significação para o conjunto do país”.
A base da economia da Amazônia era, em 1808, a exploração de especiarias e a extração de cacau. Logo em seguida, começou a da borracha. O aproveitamento dos produtos da floresta deparava sempre com a mesma dificuldade: a quase inexistência de população e a dificuldade de organizar a produção baseada no escasso elemento indígena. Com o chamado surto da borracha, as fantasias e sonhos de enriquecimento rápido deram lugar a uma nova sociedade – opulenta para os padrões da época nos principais centros urbanos e ativa, organizada, expansionista nas imensas áreas dos seringais que avançavam do território paraense aos altos rios.
À nova sociedade, adicionou-se uma geografia diferente, com a consolidação da criação da província do Amazonas (em lei sancionada pelo imperador Pedro II em 1850 ) e do norte mato-grossense, incluindo Rondônia, além da anexação de novos territórios, como o Acre (comprado da Bolívia em 1903). Tudo consequência inevitável do chamado surto da borracha.
À sombra disso tudo, porém, havia uma questão social original. As centenas de milhares de imigrantes, em sua maioria compostas de nordestinos, viviam em condições semicompulsórias de trabalho e subsistência. A economia extrativista estabeleceu relações de dependência econômica, social, cultural e psicológica entre as populações caboclas e os imigrantes com comerciantes, seringalistas e proprietários em geral.
Esse era o desafio que se oferecia aos judeus de Tânger e Tetuan. Nas sinagogas de suas cidades norte-africanas, alguns deles antecipavam seu bar mitzvá, cerimônia de confirmação da maioridade, feita aos 13 anos, e, dez ou 15 dias mais tarde, embarcavam nos vapores da Mala Real Inglesa – quase 4 mil jovens, ao todo, fizeram a viagem. Muitos deles eram imberbes, mas recém-casados. Outros, solteiros, vinham apenas com a roupa do corpo. Muitos dos recém-casados deixaram as jovens esposas entregues aos cuidados de suas famílias, por absoluta falta de recursos para levá-las imediatamente. Dezenas dessas moças foram esquecidas, quando seus esposos, na Amazônia, morreram vítimas de enfermidades desconhecidas. Outras simplesmente foram trocadas pelas caboclas. A grande maioria, porém, foi chamada por seus noivos e esposos.
Vida dura
A primeira parada dos judeus marroquinos costumava ser Belém, no Pará, onde eram recebidos por famílias como os Nahon, Serfatty, Israel e Roffé, que já estavam aqui porque tinham negócios com empresas inglesas e francesas. Eles providenciavam roupas para os recém-chegados e os alojavam numa hospedaria. Lá, os rapazes recebiam rápidas e singelas informações sobre como deviam se comportar nos sítios ao longo dos rios onde iriam viver nos próximos anos.
Não havia muita dificuldade quanto ao idioma, já que todos falavam espanhol e hakitia (uma mistura de espanhol, português, hebraico e árabe desenvolvida no Marrocos). Nos dias que se seguiam, devidamente escalados pelas casas aviadoras às quais se filiavam, embarcavam num vaporzinho (no melhor dos casos) ou num simples regatão (grande barco, na época, a vapor). Já iam com sua mercadoria a bordo e um barracão como destino. A casa aviadora era a organização comercial, em Belém, à qual o sujeito ficaria ligado para a compra e a venda de mercadorias, e que supriria também suas demais necessidades – seria uma espécie de “consulado” na capital.
O ciclo da borracha era baseado numa estrutura organizada. O núcleo econômico e social do seringal era o barracão: misto de residência do comerciante, de armazém que avia (o fornecedor de mercadorias ao seringueiro caboclo) e de depósito de borracha. Próximo a ele ficava o centro, onde se concentravam as atividades de extração e coleta de castanha, onde estavam os tapiris (palhoça) para a moradia e para a defumação, além das bocas ou estradas de seringa (um caminho ou picada que ligava às seringueiras de onde se extraía o látex).
Não existiam vínculos empregatícios entre os seringueiros caboclos e os seringalistas. Além deles e da casa aviadora, faziam parte da corrente do extrativismo a casa exportadora e a casa importadora – ou seja, as conexões nacional e internacional do comércio da borracha. De um ponto de vista secundário, estavam o regatão e os aviadores, que intermediavam o negócio, ora entre o seringalista e o seringueiro, ora entre o seringalista e a casa aviadora.
A estrutura econômica da Amazônia, pelo menos até o fim dos anos 50, caracterizava-se pelo sistema de crédito. O aviador era a pessoa que efetuava o aviamento, isto é, fornecia os bens de consumo e de produção, enquanto o aviado era o que recebia. O judeu, e depois seu descendente caboclo, chamado de hebraico, era normalmente o seringalista. Muitas vezes era ligado às casas aviadoras e, em raros casos, às empresas exportadoras, dominadas pelos ingleses, portugueses e “coronéis” nordestinos.
Foram os judeus também os primeiros regatões (caixeiros-viajantes) da Amazônia. Suas embarcações levavam as mercadorias para serem trocadas nos seringais mais distantes por borracha, castanha, copaíba (cujo bálsamo era, então, a medicação por excelência das doenças venéreas na Europa), peles e couros de animais silvestres.
No início, o jovem judeu vivia sozinho, regateando. Depois, formada a família, ia comercializar no interior mais afastado, comprando e vendendo mercadorias. Quando sua situação se consolidava, tratava de transferir esposa e filhos para cidades maiores, onde a criançada nascia a cada dois anos. Segundo Benchimol em seu livro Eretz Amazônia, eles eram “gerados em cada visita do pai à esposa, durante as páscoas e celebrações religiosas de Rosh Hashaná [ano novo judaico], Iom Kipur [dia do perdão], Pessach [quando se celebra o êxodo do povo de Israel], Purim [comemoração da sobrevivência judaica sob domínio persa], Chanuká [festa das luzes] ou para as cerimônias de brit-milá [circuncisão] de seus filhos, ou para o bar mitzvá”. E observa: as esposas parideiras tinham uma média de 6 a 8 filhos antes de completar 40 anos de idade.
Na Amazônia, os judeus marroquinos ergueram sinagogas, construíram cemitérios e mantiveram suas tradições, como o bar mitzvá e as circuncisões, e comemorações das datas festivas religiosas. Por causa de fatores como o clima, algumas adaptações foram necessárias. Em Manaus, por exemplo, até os anos 1980, os sepultamentos judaicos eram feitos conforme a tradição, com o corpo indo direto ao chão envolto apenas na mortalha. Mas, em um dia chuvoso, um corpo escorregou e caiu. Depois disso, os rabinos locais “reinterpretaram” a lei judaica e hoje enterra-se lá com caixão de fundo falso – ele tem uma fina lâmina de compensado que se rompe quando o caixão desce à sepultura.
Agora os hebraicos da floresta não são ricos – mas também estão distantes de serem miseráveis. Mantêm determinados preceitos do judaísmo, mas incorporaram outros, numa espécie de sincretismo que os brasileiros conhecem bem. Há pesquisadores, como o próprio Samuel Benchimol, que acreditam que eles sejam mais de 300 mil. Todos completamente adaptados à região.
Bem diferente da história de uma judia marroquina que se mudou para a Amazônia junto com as primeiras levas de emigrantes, no século 19. A jovem Suzanne Cohen Serruya, recém-transformada na condição de mãe, amamentava seu bebê quando adormeceu perto do rio em Cametá, no baixo Tocantins. De repente, percebeu que seu outro seio estava sendo sugado e acordou. Era uma serpente. Apavorada, ela pediu a separação e regressou ao Marrocos.
O santo rabino
Shalom Moyal tem fama de milagreiro
Um exemplo do sincretismo na comunidade de hebraicos na Amazônia tem no rabino Shalom H. Moyal sua figura mais notória. Ele migrou para Manaus em março de 1910 para angariar fundos para a caridade. A gripe espanhola dizimava a população e ele foi uma das vítimas. Foi enterrado no cemitério goy (em hebraico, não-judeu). Fiéis passaram a atribuir ao rabino, depois de morto, algumas graças alcançadas. Publicaram mensagens diárias nos jornais, colocaram dezenas de placas sobre o túmulo dele. A adoração é tanta que o rabino santo quase criou um problema para os judeus de Manaus. Como sua família é importante em Israel (um sobrinho, Ely Moyal, foi vice-ministro das Comunicações do país), cogitou-se remover seus restos mortais para a Terra Santa. Os manauaras não gostaram da ideia e a família concordou em mantê-lo aqui – realizando seu nobre e desinteressado trabalho.
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