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quinta-feira, 30 de março de 2023

Acontece - PONTE - A PASSAGEM QUE UNE O PASSADO AO FUTURO

Acontecendo... PONTE  - A PASSAGEM QUE UNE O PASSADO AO FUTURO... das ruas de Israel à Festa da Liberdade

Por Regina P. Markus 30/03/2023


Azerbaijão instala sua embaixada em Jerusalém


Israel em todos os jornais do mundo, Israel andando por vielas complicadas construindo a sua história, Israel se preparando para Pessach - enquanto comemora o Ramadã e aprecia a chegada da Páscoa. Nas últimas semanas acompanhamos a opinião de muitos amigos que enxergaram o AQUI e AGORA como um momento de ruptura dentro do Estado de Israel. MAS... o sonho de existir um Estado Judeu tocou as mentes e houve uma flexibilização de muitos atores de forma a criar uma brecha no tempo. A Histadrut - o sindicato geral de Israel, que foi chave para a criação do Estado - desarticulou a greve geral e outras noticias afloram... esta passagem estreita no tempo pode ser chamada de Páscoa, tradução grega da palavra Pessach! Hoje, conto para vocês as muitas coisas que aconteceram nestes últimos dias confirmando que AM ISRAEL CHAI VE KAIAM. 


Há uma semana e por cerca de 4 meses, as bandeiras azuis e brancas dominam todas as paisagens de Israel. Fica evidente a revolta que dominou  grande número de israelenses. Participando de algumas marchas, via celular, era evidente que a cor predominante em pequenas cidades ao norte de Tel Aviv e em Jerusalém era o Azul e Branco. O arco íris e bandeiras vermelhas eram vistos nos jornais e revistas que chamavam atenção para a pluralidade dos eventos. Juntando as duas informações fica patente que houve adesão de importante parte da população e que a ideia que O Povo de Israel é um Povo entre as Nações vale também para classificar internamente os judeus. Ser um entre muitos significa MANTER A IDENTIDADE. 

E esta atitude frente à vida é exaltada a plenos pulmões.

Claro que os antissemitas sempre de plantão, e que usam a famosa linguagem de efeito desde a antiguidade, alteraram o conceito de povo entre os povos para criar o termo mais curto...  "povo eleito". Mais ainda, os que fizeram o cisma no século I diziam que os judeus se autodenominavam "povo eleito". Esta é uma fake news que singra por milênios. Ser único e diferente de todos não é ser melhor ou pior, é admitir a diversidade! Saber que a verdade única é uma falácia e que esta pode ser atingida por milhares de rotas.


Esta semana vem confirmar a veracidade destas afirmações. Ações e reações do governo e da população levaram à proposição de uma greve geral! A suspensão da votação das reformas, vontade declarada da oposição e alguns membros do governo de abrir um debate, permitiu que a Hitadrut suspendesse o chamamento de greve e o país entrasse no clima do Ramadã, Pessach e Páscoa. A ordem é de acordo com o calendário deste ano! Ramadã já começou e Pessach e Páscoa serão na semana que se inicia. Olhar o copo cheio ou o copo vazio.... uma expressão muito usada, mas muitos esquecem que o foco é olhar o copo! Ter acesso aos fatos. 


Na semana que hoje se encerra são muitos os fatos de alta relevância e que não chegaram à mídia.


1 - A FIFA retira a competição SUB-20 de futebol da Indonésia. Este país se recusa a receber atletas israelenses em seu território. Antes que muitos iniciem falas sobre grupos que têm como lema a retirada do Estado Judeu do mapa, vamos lembrar que na Knesset, parlamento de Israel, há deputados árabes, judeus, cristãos e ateus. Lembramos que desde os tempos bíblicos houve a separação entre estado e igreja. Entre a condução política do povo e a condução religiosa. Desde os tempos de Arão e Moshé e os tempos dos juízes e reis, a função de sumo-sacerdote era completamente separada da função de líder político. Assim, é muito bem vinda a decisão da FIFA!


2 - Um trabalho conjunto das forças de segurança de Israel, incluindo o Mossad e as forças de segurança da Grécia, desbaratou um projeto de aterrorizar turistas israelenses na Grécia. Esta é uma época em que israelenses viajam e aproveitam as férias de Pessach. A Grécia é um destino muito apreciado e a troca de turistas é muito bem vinda. O grupo terrorista desmascarado tinha o objetivo de assassinar cidadãos israelenses em férias na Grécia.


3 - AZERBAIJÃO, capital BAKU. Este país, que fica entre o Mar Cáspio e as montanhas do Cáucaso, faz fronteira com a Rússia e Geórgia, Armênia, Turquia e Irã, mantém relações diplomáticas com Israel desde 6 de abril de 1992 e instalou sua embaixada em Jerusalém no dia 29 de maço de 2023. Reconheceu Jerusalém, a cidade sede do governo de Israel, localiza o Parlamento e o Governo como Capital.  E assim, das terras do oriente vem novamente a dupla visão. Os que renegam a existência dos judeus e aqueles que reconhecem que são um Povo Entre os Povos. Ter oportunidade de acompanhar todos estes acontecimentos em uma mesma semana mostra o quanto vivemos em tempos agitados e de muitas opiniões.


A Academia há séculos aprecia os fatos à luz do que pensam os ilustres. Muito comum ver textos relevantes baseados em citações de forma a validar a opinião do articulista, escritor e cientistas. Com isso, as idéias ganham um movimento circular de auto-alimentação, e ideias novas ou mesmo antigas que não ganharam holofotes são esquecidas ou mesmo desacreditadas. Há uma passagem estreita entre o novo e o mais do mesmo. Judaísmo há muito usa esta passagem estreita, a passagem do debate de idéias e não de mentores ou sábios.

Assim chegamos em uma PASSAGEM estreita que permite vislumbrar um caminho que transforma heranças em legados e atravessa gerações. Chegamos à semana de PESSACH, quando sentamos à mesa em família e em comunidade para contar a história do início do povo judeu. Um jantar com muitos rituais. Nenhum deles sagrados ou insubstituíveis. Apenas compare as tradições ashkenazis, sefaradis, mizrachi, etíopes e muitas outras. Ainda no mundo ashkenazi podemos comparar as comidas, ditas tradicionais. Há variação para tudo. O famoso "guefilte fish", que é comido gelado em algumas regiões, é degustado quente em outras. Apenas lendo a frase anterior é possível imaginar que a região de onde vem a família de quem está escrevendo tem o hábito de comer quente! 

Pessach, a passagem é estreita, o anjo da morte é orientado a pular as residências dos judeus, a comida que falta é complementada pelo maná que cai dos céus. As pessoas cometem muitos erros e são punidas ou perdoadas, na dependência da porção que estamos lendo... quantas controvérsias, quantas variações. É este espírito o maior legado de Pessach e da Torah, que conta de forma exemplar a PASSAGEM da escravidão à liberdade. 


Esta PASSAGEM, por mais estreita e conturbada que tenha sido, perdurou por milênios e continuamos a sentar à mesa de Pessach e contar a HAGADÁ. Será que são os hábitos e costumes que mantêm nossa tradição por milênios? Vou me atrever a emitir minha opinião, sem usar as muletas dos que me precederam. Considero que a grande variedade de judeus e as controvérsias que existem entre grupos e pessoas estão na base de nossos alicerces. A amálgama que une todas estas diferenças é o Talmud. Mais do que os textos (que são importantíssimos), a forma como é construído. Textos de leis e textos de discussão e elaboração de opiniões controversas. A diversidade desde as diferença entre as Casas de Shamai e Hillel (século -I a I) até opiniões de rabinos da Babilônia, Jerusalém e Europa, estão registradas. A cada século as conclusões podem mudar, mas devem ser acompanhadas. O grande legado é o método de discussão. Tão parecido com o método científico, que é baseado em hipóteses e não em conclusões. Os avanços são decorrentes da forma de perguntar. Portanto, PERGUNTAR, DUVIDAR, PESQUISAR é preciso.


Pessach nos ensina que todos os filhos são importantes. Mas temos que ter a sensibilidade de conversar com cada um em sua linguagem. E a Hagadá nos ensina que o protagonista que conhecemos nem sempre é o dono de toda a verdade. Tanto que Moshé não é citado nominalmente.


ACONTECE... Pessach acontece a cada ano, a cada geração! E como é bom sentar à mesa e lembrar o passado. Mesmo aquele que não vivemos, mas apenas ouvimos falar!


CHAG SAMEACH!


Regina P. Markus


segunda-feira, 27 de março de 2023

VOCÊ SABIA? - Friedl Dicker-Brandeis

 

Nesta maré de março, de mulheres que inspiraram o mundo, apresentamos a artista Friedl Dicker-Brandeis, uma heroína em Theresienstadt - um campo de concentração sobre o qual uma criança prisioneira escreveu “Eu nunca mais vi uma borboleta...”

Por Itanira Heineberg


"Sitter with Wings" – “Babá com Asas”, tela de Freidl Dicker-Brandeis, 1920.


Você sabia que Friedl Dicker-Brandeis, talento da escola Bauhaus e grande promessa do século XX, a artista que acolheu as crianças em seu coração durante o Holocausto na Segunda Guerra, a elas dedicando-se com paixão, trabalhou exaustivamente ensinando-as a amenizar a tristeza e o desencanto através do amor e da arte?

Separadas de seus familiares, agrupadas por idade e por sexo, amontoadas em quartos insuficientes para tantas crianças, solitárias e muitas vezes sem entender o que se passava no mundo que abandonaram antes de ali chegar, sem higiene, pouquíssima e inadequada alimentação, sujeitas ao frio e ataques de percevejos ao ponto de dormirem ao relento em noites insuportáveis em seus colchões infestados, que magia restava a Friedl para encorajar estas pobres crianças?



Friedl Dicker-Brandeis nasceu em Viena, Áustria, em 30 de julho de 1898 e morreu em Auschwitz, Polônia, em 9 de outubro de 1944, na câmara de gás.

Friedl teve uma infância feliz, sempre estimulada por seus pais que a apoiavam em seu interesse precoce pelas artes e pela cultura.

 

Em 1911, estudou fotografia e design gráfico. Em 1915, matriculou-se na Academia de Belas Artes de Viena, onde se especializou em arte têxtil e bordado. Ela foi pupila de Franz Cižek; o pintor tcheco ensina-lhe a relação entre arte e educação infantil.

De 1916 a 1919, Friedl Dicker foi aluna de Johannes Itten em sua escola particular em Viena. Lá ela conhece Franz Singer e Anny Wottitz, amigos e futuros colaboradores. Ao mesmo tempo, ela desenvolveu uma paixão pela música e teve aulas de harmonia na escola de Arnold Schoenberg. É sem dúvida lá que conhece e se liga a dois compositores Viktor Ullmann e Stefan Wolpe que, ambos, lhe vão dedicar peças.

Quando Johannes Itten foi a Weimar para ensinar na Bauhaus, ela o seguiu, assim como Anny Wottitz e Franz Singer. Aí investiu de 1919 a 1923 na tecelagem, gravura, encadernação e participou em workshops de tipografia.”

 

Em 1931 iniciou sua carreira educacional ao ser convidada pela cidade de Viena a dar aulas de arte para professores de jardim de infância. Mas em 1934, durante o movimento de direita em Viena, ela foi presa por atividades comunistas. Ao ser liberada mudou-se para Praga, uma fortaleza da democracia, onde casou-se com seu primo Pavel Brandeis e obteve cidadania checa.

Ela e o esposo se dedicaram a várias atividades num movimento incessante de trabalho e criação. Em 1938, véspera da Segunda Guerra e com o Holocausto já mostrando suas garras, Friedl recebeu um único visto para a Palestina mas, não querendo abandonar o marido, resolveu ficar.

Em 1939 eles perderam seus empregos e foram forçados a se estabelecer na aldeia de Žďárky, onde Pavel trabalhava como marceneiro. Em 1942 o casal foi preso e enviado para o campo de Theresien, hoje República Checa, um campo para pessoas inteligentes, portadoras de talentos, com o intuito de criar uma janela falsa para o mundo: para lá foram judeus alemães heróis da Primeira Guerra Mundial, artistas plásticos, atores, músicos, escritores; judeus eminentes cujo desaparecimento chamaria a atenção do resto da Europa.

Para encantar o mundo e os visitantes ocasionais, algumas atividades culturais eram ali desenvolvidas e consideradas de alto nível: orquestras, grupos de jazz, teatro, escolas, ateliês de pintura, e até uma ópera composta e executada pelas crianças, “Brundibár”.

Sim, um gueto cultural para impressionar os visitantes e a Cruz Vermelha Internacional, um campo que virava um show artificial onde seus habitantes e em especial as crianças seguiam um script de alegria, paz, música e atividades artísticas.

Assistamos aqui a um curto vídeo da Ópera Infantil Brundibár:



Mas a realidade ali era bem diferente, uma vez os visitantes se retiravam.

Os prisioneiros adultos que ali chegavam interessavam-se pelas crianças, queriam apresentar-lhes um sentido para aquela vida, e seguindo suas especialidades criaram um programa cultural para elas.

 

“As aulas de desenho tinham uma posição privilegiada dentro do programa de atendimento infantil do gueto. Dicker-Brandeis conduziu as aulas empregando os métodos experimentais especiais que ela adotou em geral de seu professor Johann Itten (1888–1967), mas também de outros pioneiros da arte experimental na State Bauhaus em Weimar, onde estudou de 1919 a 1923... Nas condições extremas do gueto, essas aulas se tornaram um pilar do programa educacional organizado clandestinamente. Seu objetivo, como ela disse, não era ensinar as crianças a serem artistas, mas desenvolver seu intelecto criativo, emocional e social.

Apesar da aplicação de um método preciso, Dicker-Brandeis ainda conseguiu respeitar a individualidade de cada criança e permitiu-lhes a liberdade de se expressar, liberar suas fantasias e emoções e, como resultado, sua instrução teve um efeito terapêutico inestimável. No outono de 1944, ela e a maioria de seus alunos foram deportados para o leste, e com ela quase todos morreram nas câmaras de gás de Auschwitz.”



Theresien era uma pequena fortaleza checa construída entre 1780 e 1790 que mais tarde virou uma prisão.

Em 1940 a Gestapo tomou controle do prédio e ali construiu um gueto-modelo de Hitler.

Pelos 3 anos e meio em que ali torturaram seus prisioneiros, passaram mais de 140 mil pessoas e das 15 mil crianças só restaram 93 com vida no final da guerra.

Em seu trabalho quase diário com os pequenos, Friedl colecionou 4.500 desenhos infantis e guardou-os em duas malas que escondeu em um dos dormitórios das crianças antes de ser transferida para Auschwitz. Estes desenhos encontram-se hoje no Museu Judaico de Praga desde o fim da guerra. O acervo tem viajado o mundo desde 1945 e vários desenhos foram expostos aqui em São Paulo, no MUBE em 2014, durante a exposição “As Meninas do Quarto 28”.

Ao trabalhar com as crianças do gueto, experimentando suas ideias e conhecimentos, Friedl esperava desenvolver sua própria tese sobre Arte como Terapia Infantil.



Colagem de Erika Stránská, garota prisioneira em campo de concentração nazista, Therezien.

As crianças foram muito influenciadas por Friedl. Os sobreviventes disseram que ela foi “o mistério da beleza”, “o mistério da liberdade.” Uma das alunas, Erna Furman, escreveu em 1989: “Os ensinamentos de Friedl, as horas passadas desenhando com ela, são as memórias mais queridas de minha vida. Friedl foi a única que ensinou sem nunca pedir nada em retorno. Ela simplesmente se doou.”

Há tanto a ser dito sobre Friedl, mas sua vida melhor do que qualquer palavra justifica o carinho e admiração que recebeu de todos que a conheceram.

Assim, nada melhor do que deixar Ela Weissberger, uma de suas alunas sobreviventes, falar sobre esta pessoa que acolheu a todos os que a rodeavam no gueto, oferecendo amor e esperança de dias melhores.

Este filme de Moriah Films do Simon Weisenthal Center narra histórias de coragem e valor, histórias que inspiram.

Neste vídeo vemos que não havia papel nem materiais para fazer arte, mas Friedl tudo provia. Ela pedia: “Pintem um desenho para mim” - e levava as crianças a lembrarem o passado e pensarem no futuro de um mundo lá fora. Este era o quarto 28 e quase todos os dias Friedl alegrava a vida destas meninas com seu sorriso e sua intenção de ajudá-las.

Ela Weissberger conta que após a Noite dos Cristais e do desaparecimento de seu pai ela, a mãe e irmãs fugiram da terra do Sudeto. Em 1942 foram levadas pelo trem para Theresien onde a avó e o tio foram separados, mas elas ficaram unidas por algum tempo. Ao saírem do trem tiveram de caminhar 3 km na neve, até a entrada do campo.

Num relato apaixonado, Ela nos dá uma ideia das aulas de arte daquela professora benfazeja, que a todos acudiu.

Weissberger se emociona ao agradecer o que recebeu de Friedl e lastima a sorte das outras crianças que não sobreviveram.

 

 


 

Friedl e as meninas do quarto 28.



FONTES:

http://makarovainit.com/friedl/home.html

file:///C:/Users/HEINEBERG/Downloads/amandat,+Journal+manager,+04_OZANAN_48_62.pdf

https://jwa.org/encyclopedia/article/dicker-brandeis-friedl

https://www.jewishmuseum.cz/friedlscabinet/

https://awarewomenartists.com/artiste/friedl-dicker-brandeis/

https://www.jewishmuseum.cz/en/collection-research/collections-funds/visual-arts/children-s-drawings-from-the-terezin-ghetto/

Simon Wiesenthal Center enewsletter@wiesenthal.com

https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2014/05/desenhos-de-criancas-que-viveram-em-campo-de-concentracao-nazista-sao-exibidos-em-sp.html

https://musicaeholocausto.weebly.com/sala-1---a-histoacuteria-de-tereziacuten-e-da-oacutepera-infantil-laquobrundibaacuterraquo.html

“As Meninas do Quarto 28” - Hannelore Brenner (livro)


quinta-feira, 23 de março de 2023

Acontece - Israel Civilizatório

 

Matan Onyameh (esquerda) em 'Angels in America,' no Cameri Theater. Foto Oded Antman



Sou judeu, negro e gay. Com o que está acontecendo em Israel, eu deveria ser crucificado[1]”. Esta afirmação é do ator Matan Onyameh, que enfrentou abusos e o racismo até que pudesse realizar seu sonho: estrelar nos palcos de Tel Aviv. Agora, com um papel em “Angels in America”, alcança seu objetivo em sua pátria. Mas, num momento muito delicado e de grande fratura da sociedade israelense, há no ar a incerteza de manutenção da estrutura judicial, de um futuro democrático e de respeito à diversidade social.

Diversidade refletida na peça “Angels in America[2], explorando a temática da tolerância, como também de um D-us que é descrito como um grande Aleph flamejante. Este D-us teatral cria o Universo através da cópula com seus anjos que são oniscientes, mas incapazes de criar ou mudar por conta própria. Com isto, D-us fica entediado com a personalidade destas criaturas passivas, criando assim uma humanidade com o poder de mudar e criar, surgindo o livre arbítrio.

Onyameh estreia sua peça no Teatro Cameri, estabelecido em Tel Aviv desde 1944, antes da fundação do Estado de Israel. É um dos principais teatros do país, localizado no Centro de Artes Performativas da cidade mais israelense do país e atrai cerca de 900 mil espectadores por ano. É conhecido como um local de resistência, de reivindicação social democrática e diversa. O ator interpreta Belize, uma ex-drag queen e amante de Walter (Elad Atrakchi). Também interpreta Mr. Lies, uma personagem que aparece nas alucinações de Harper Pitt (Avigail Harari), a esposa instável de um advogado mórmon. 

Essa peça é parte de uma grande polêmica por onde passa, não de hoje, mas já de muitos anos, por ser classificada como parte do roteiro da “guerra cultural[3]” travada em nossa geração. O tratamento franco da homossexualidade, da AIDS, a nudez e o debate franco da fragilidade da vida, bem como da natureza do Divino, gera reações furiosas dos grupos conservadores e religiosos ao redor do Mundo desde 1991. Não é diferente em Israel, principalmente neste momento.

Mas Israel não é careta, como diriam em minha geração. O Povo e o Estado de Israel sempre foram caracterizados pela capacidade de inovação civilizatória. Como afirma o filosofo alemão Peter Sloterdijk, “o monoteísmo judaico nasceu como uma teologia de protesto[4]”. Não é à toa que o Estado de Israel seja polo de inovação tecnológica, tenha universidades comparáveis com as da Europa e Estados Unidos, seja um centro de pesquisa e desenvolvimento dos mais avançados do Planeta. O judaísmo é civilizatório e moderno.

Tais aspectos vão ao encontro ao pensamento de Mordecai M. Kaplan[5], o pai do reconstrucionismo judaico e que nos brinda todos os Shabatot no Esh Tamid com um Alênu inclusivo, retirando a linguagem de “eleição de Israel entre os povos”. Kaplan afirma que o judaísmo é moderno e avançado em suas proposições de forma civilizatória, por isso da reconstrução dos conceitos litúrgicos. Este grande pensador moderno judaico é promotor de mudanças profundas no modo de ver da teologia judaica, mas também na forma judaica de entender a política social.

Kaplan sustenta e propõe que a “governança[6]” da sinagoga deva ser democrática. Que o pensar democrático é o que sustenta a comunidade judaica da diáspora e ajudou a fundar o Estado Judeu. Ainda, afirma que as diversas correntes judaicas[7] creem que o grande diferencial do judeu seja nossa identidade religiosa, ou mesmo nossas correntes de pensamento teológicos.

No entanto, Kaplan sustenta que o judaísmo tem como fundamental motor de desenvolvimento sua organização comunitária democrática e nada hierárquica. Por sua vez, esta governança organizacional democrática é que marca a forma de pensar e agir do judeu. E, arrisco a dizer, contribui para a consolidação do movimento sionista e da criação do Estado de Israel.

Hoje talvez possamos acrescentar que a garantia da diversidade de opiniões - que sempre marcou a história dos judeus e do judaísmo - é o que nos manteve vivos em um Mundo que nos perseguiu e nos matou por sermos diferentes. Vejam as discussões Talmúdicas, como marcam nossa maneira de pensar e de agir. São debates infindáveis e acirrados, mas que respeitam as diversas opiniões das minorias ou de maiorias.

O Talmud impacta na forma de pensar do judeu, de nossas organizações, bem como na forma de organização de nossas comunidades. Tal maneira de pensar e os debates promovem na prática um processo de desenvolvimento do judaísmo, assim como a inclusão de pequenos grupos, mesmo que seja de forma lenta, para os críticos.

Ao longo dos tempos as comunidades promoveram inclusão e a diversidade foi a marca. E temos que lembrar que instituições e organizações surgiram antes do Estado de Israel para defender nosso Povo e seus interesses. Como exemplo, muito conhecido, a KKL[8] ou o Teatro Cameri em Tel Aviv, que mencionei, espaço de resistência cultural israelense. Está no DNA do nosso Povo e do Estado de Israel a defesa da ética, da justiça, das minorias, do diferente. 

Portanto, faz parte de nossa cultura, como afirmou Yurval Harari em um belo artigo intitulado “They’ve forgotten what it means to be Jewish[9]”, (Eles esqueceram o que significa ser judeu – tradução livre). O escritor de “Uma breve história da humanidade” que conquistou milhões de leitores ao redor do Planeta, afirmou, que “...quando 99% comemoravam o Natal, os judeus comemoravam o Hanukkah. Enquanto 99% jejuavam no Ramadã, os judeus jejuavam no Yom Kippur... Enquanto 99% comiam carne de porco, os judeus comiam knaidel[10].”

Nossa existência como Povo ensinou ao Mundo que “a (s) minoria (s) também tem direitos. Mesmo que haja mais de vocês do que de nós, ainda podemos comer o que quisermos, e vocês não deveriam nos dizer como viver[11]”. Nossa existência coletiva foi e é uma afirmação da possibilidade de existência de minorias ao redor Planeta. E me parece que, neste momento, parte do Governo em Israel esqueceu nosso papel no Mundo em defesa das minorias e porque nós, ainda, somos minoria no Mundo do século XXI.

 

Nosso Povo é diverso, precisamos compreender melhor a nossa diversidade. Temos judeus negros, judeus latinos, judeus anglos saxões, judeus negros, judeus gays, judeus altos e baixos, judeus gordos e magros, judeus bonitos e também feios. Judeus de olhos grandes e de nariz de batata, mas também olhos miúdos e de olhos castanhos. Judeus de esquerda e de direita, judeus liberais e conservadores. Judeus progressistas e judeus retrógrados. Judeus monogâmicos e os que praticam poliamor.

A diversidade deve ser respeitada, todas, todos e todis precisam ter seus direitos garantidos, na diáspora e em Israel. Apenas e apenas, com democracia e Justiça, garantiremos estes direitos e a continuidade do privilégio de viver na época em que existe o Estado de Israel. Sim, temos que lembrar que é um privilégio viver em tempos em que existe um Estado Judeu Democrático.

Privilégio que foi compreendido por um turista americano[12], quando entrou em um correio para enviar para um pacote, com itens comprados em Israel, durante sua visita. Quando ele se aproximou do balconista, o pacote foi pesado. Como era costume, antes de haver máquinas de postagem com etiquetas autocolantes, o balconista contou os selos, entregou ao cliente (turista) para lamber, colar em seu pacote e despachar.

O cliente (o turista) ficou horrorizado e logo disse muito bravo: “...na América, o carteiro faz isso para gente!” Uma outra pessoa na fila, deu um tapinha no ombro do turista e disse: “Sabe, há 2.000 anos esperamos ter o privilégio de lamber selos que dizem “Estado de Israel” e o funcionário não quer tirar esse privilégio de você!

Privilégio civilizatório, que gerou Onyameh, gay e ator de 30 anos, nascido em Ramat Gan, com uma mãe israelense e um pai ganês. Israel que gerou como fruto os pensamentos de Mordecai M. Kaplan, pai do reconstrucionismo, de um judaísmo moderno, civilizatório e inclusivo. O Estado de Israel é civilizatório por ter gerado Yuval Harari, gay, ateu, historiador e escritor. Por isso, não podemos esquecer o que significa ser judeu, o que significa defender a democracia e justiça.

Justiça que será em breve lembrada em Pessach, quando estivermos confortavelmente sentados em nossas mesas, com nossas famílias, amigos e em comunidade. Teremos como mitzvah que recordar que fomos estrangeiros, que fomos escravos e precisamos tratar as minorias com justiça (“Tzedek Tzedek Tirdof” – Devarim 16:18–21:9). Assim, que neste ano tenhamos mais uma lembrança: que temos o privilégio de viver em uma época em que existe um Estado Judeu, Democrático e Justo.

 

 Marcelo Cardoso



[1] https://www.haaretz.com/israel-news/2023-03-05/ty-article-magazine/.premium/im-jewish-black-and-gay-with-whats-going-on-in-israel-now-i-should-be-crucified/00000186-9dc3-d2ea-af96-ddc3fe930000

[2] É uma peça de duas partes do dramaturgo americano Tony Kushner que estreou em 1991.

[3] Entenda a guerra cultural: https://es.wikipedia.org/wiki/Guerra_cultural

[4] Do Livro “O Zelo de Deus”, Editora UNESP, 2016.

[5] Mordecai Menahem Kaplan (11 de junho de 1881 a 08 de novembro de 1983), nasceu em um vilarejo nos arredores de Vilna, na Lituânia, em uma família tradicional de judeus ortodoxos mitnagdim (não chassídicos). Foi rabino, ensaísta e educador e co-fundador do movimento reconstrucionista, com o seu genro Ira Eisenstein.

 

[6] Governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. Site Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), em 20.03.2023 às 8:55h.

[7] La Civilización de Israel en la Vida Moderna, Colección Sefer, Argentina - 2006 - pg. 53.

[8] Fundo Nacional Judaico - Keren Kayemet Leyisrael, fundado em 1901.

[9] https://blogs.timesofisrael.com/theyve-forgotten-what-it-means-to-be-jewish/

[10] https://blogs.timesofisrael.com/theyve-forgotten-what-it-means-to-be-jewish/

[11] https://blogs.timesofisrael.com/theyve-forgotten-what-it-means-to-be-jewish/

[12] https://www.jpost.com/opinion/article-731472


sexta-feira, 17 de março de 2023

Acontece - ENTRE PURIM E PESSACH

 

ENTRE PURIM E PESSACH

Por Angelina Mariz de Oliveira 

 


Entre a salvação de um eterno inimigo – Amalek; e a libertação de um idólatra – o Faraó, vivemos por algumas semanas, ou por muitos séculos, ou fazemos uma viagem ao passado.

Quando celebramos o fim da escravidão no Egito, o Mar Vermelho havia se fechado sobre os egípcios. Mas a segurança não estava garantida. Alguns dias depois os mais fracos e vulneráveis foram atacados por predadores humanos. Triste, porque eram primos, também descendentes de Isaac e Rebeca.

Centenas de anos depois, com a destruição do Primeiro Templo e novo exílio, somos salvos em Shushan sem a ajuda de Deus (será?). Mais uma vez comemoramos a morte de centenas de inimigos, enforcados, abatidos a fio de espada. Mais uma vez a segurança não estava garantida, o Segundo Templo também foi destruído, e fomos espalhados pelo Império Romano, fugimos por todo o planeta, no mais longo exílio de nossa história.

Milhares de anos depois, comemoramos Pessach seguindo instruções bíblicas e rabínicas. É uma festa à Liberdade, de lembrança dos grandes feitos de Deus, e de um pequeno momento de empatia com os egípcios que pereceram. Purim é celebrado com excessos de alegria, de embriaguez, e ainda, a partir do século XVI, incorporando os costumes cristãos de usar máscaras e fantasias. Ainda nos alegramos, gritamos e rimos quando o nome do líder inimigo é pronunciado, aquele que foi enforcado com seus filhos.

É preciso lembrar, revivendo integralmente o passado, que a segurança não está garantida ainda hoje.

Na época em que aqueles que querem nos destruir forem neutralizados com ações de acolhimento, com diálogo, com inclusão, com respeito, talvez sejam os tempos vindouros da Era Messiânica. Mas mesmo assim, será preciso ficar atento.

As ameaças a nossa integridade podem vir de dentro de nossas comunidades. Mesmo entre aqueles que estudam as fontes Bíblicas, que conhecem as mitzvot, surgem lideranças que fazem interpretações fundamentalistas, que ‘esquecem’ várias mitzvot relativas aos não judeus, e outras várias mitzvot relativas aos judeus, e às judias.

É preciso ficar atento, pois os predadores também surgem entre nós.

E sempre que uma pessoa judia ataca os vulneráveis e desrespeita seu próprio povo, justifica o antissemitismo.

São dias difíceis esses entre Purim e Pessach, especialmente nesse ano.

É preciso que o Sêder que em breve vamos preparar tenha uma forte consciência de que a paz – nossa segurança – só será alcançada se concretizarmos as mitzvot de amar ao irmão, de cuidar dos vulneráveis, e de só fazer a guerra se for atacado.

Para nós, pessoas simples, meros cidadãos, isso está a nosso alcance nas relações privadas e em comunidade. O primeiro passo, que deve ter um destaque na noite de Pessach, é o afastamento da má-lingua, do ‘lashon hará’, das fake news, fofocas, intrigas... todo uso destrutivo da palavra.

É fácil, e é difícil. Como ação, é fácil, basta pensar antes de falar e não se envolver com palavras negativas. Como impulso emocional, é difícil. Existe um prazer no poder de usar as palavras para criticar, prejudicar, destruir, oprimir.

O Mundo foi criado com boas palavras, e se mantém sobre o estudo, as ações construtivas e os projetos comunitários. Nesse Pessach, se pudermos nos lembrar de tudo isso, se pudermos começar o novo ano nos dedicando à construção da paz que está ao nosso alcance, estaremos novamente saindo dos estreitos de Mitzraim, dessa vez por nós mesmos, como ocorreu em Purim.


segunda-feira, 13 de março de 2023

VOCÊ SABIA? - GOLDA MEIR, UMA HEROÍNA DE ISRAEL

 

GOLDA MEIR, UMA HEROÍNA DE ISRAEL

1898 Kiev, Ucrânia – 1978 Jerusalém, Israel

Uma das figuras mais admiradas da História Judaica

Por Itanira Heineberg



Você sabia que, neste mês da História da Mulher, o Centro Simon Wiesenthal está celebrando o legado de Golda Meir, a primeira mulher Primeira-Ministra de Israel?

Golda Mabovich - mais tarde Meir - nasceu em Kiev e aos 8 anos mudou com a família para Milwaukee, Wisconsin, nos Estados Unidos, longe dos pogroms de sua terra, onde via com terror seu pai pregar tábuas nas janelas e portas da casa da família para evitar acesso dos agressores.

Em seu novo país ela estudou com paixão e já adolescente demonstrou ser uma ativista em prol dos menos privilegiados. Tornou-se uma sionista dedicada aos 15 anos, e aos 19 trabalhou como professora de iídiche casando-se com Morris Meyerson.

Em 1921 o casal fez aliá, imigrando para a terra então chamada Mandato Britânico da Palestina, uma promessa de Morris para sua noiva.

Lá foram viver em um kibutz onde Golda logo envolveu-se no movimento e mais tarde na Histradrut - a federação trabalhista para a comunidade judaica na Palestina.

A partir de então, Golda nunca mais diminuiu seu ritmo de trabalho e empolgação pelo lugar que escolhera com tanto ardor. Seu esposo não se adaptou ao kibutz e o casal mudou para Tel Aviv. Golda continuou seu trabalho para Histadrut. Foi então enviada para os Estados Unidos por dois anos no papel de emissária sionista. De volta ao país, continuou suas tarefas e em 1938 participou da Conferência de Evian - e em 1946, quando muitos líderes do movimento sionista foram presos pelos britânicos, passou a comandar o Departamento Político da Agência Judaica.

 

“No início de 1948, Meir viajou aos EUA onde arrecadou USD 50 milhões com o objetivo de comprar armas para defender o então declarado Estado de Israel. Era maio de 1948 e a Guerra da Independência começava.

Ela foi uma das duas mulheres que assinaram a Declaração de Independência de Israel, recebeu o primeiro passaporte oficial israelense quando viajou para a URSS para se tornar a primeira embaixadora do Estado judeu na União Soviética e tornou-se ministra do Trabalho e ministra das Relações Exteriores após seu retorno na década de 1950.



Com a morte súbita de Levi Eshkol em 1969, Golda Meir tornou-se primeira-ministra de Israel, a segunda mulher no mundo a chegar a este cargo depois da indiana Indira Gandhi. Ela renunciou em abril de 1974 após controvérsias em torno do ataque surpresa a Israel pelo Egito e Síria em outubro de 1973, no que ficou conhecido como a Guerra do Yom Kippur. Até sua morte por câncer em 1978, ela dedicou suas energias para lutar em nome do judaísmo soviético e de outras causas. Até nossos dias Golda Meir continua sendo uma das figuras mais admiradas da história do país.”

 


Assistamos agora a um curto vídeo de Moriah Films (3 minutos) mostrando o momento em que Golda Meir viajou secretamente para Amã, na Jordânia, alguns dias antes do Estado de Israel ser oficialmente estabelecido, para negociar um tratado de paz com o rei Abdullah I.

Vestida de mulher muçulmana, cabeça coberta e toda de preto, Meir viajou por 3 horas, sempre parando nos check points para inspeção mas logo passando sem dificuldades devido ao fato do motorista ser um dos homens de confiança do rei.

Sua missão secreta era conversar com Abdullah numa tentativa de evitar a guerra. Ela esperava confirmar uma promessa do rei de que seu país não iria atacar o futuro Estado de Israel.

Mas ao chegar logo percebeu uma mudança no ambiente, o rei estava pálido, sob pressão, e contou que já não era o único a decidir, por isso não podia se comprometer. E perguntou a Golda qual a razão da pressa, ao que ela respondeu: “Majestade, são dois mil anos de espera.”

Golda ofereceu mais uma alternativa para alcançar seu objetivo de paz, afirmando que se não houvesse guerra, eles aceitariam as fronteiras propostas e mesmo a internalização de Jerusalém.

Eram tempos difíceis e Abdullah pediu paciência, reconhecendo que Golda tinha todas as qualificações para obter a paz no futuro.

Ele não viveu muito mais, foi morto por um terrorista. Ao rezar na mesquita foi atacado por um jovem fanático que em poucos minutos conseguiu matar o Homem que poderia ter conseguido a Paz no Oriente Médio.

O narrador é Michael Douglas e a voz de Golda Meir é a falecida atriz Anne Bancroft:

 



E agora temos outro vídeo, “Line of Life with Golda Meir”, do The Spielberg Jewish Film Archive – Hebrew University of Jerusalem.





FONTES:

enewsletter@wiesenthal.com

https://jwa.org/encyclopedia/article/meir-golda

https://www.dw.com/pt-br/1969-golda-meir-torna-se-primeira-ministra-de-israel/a-781870

http://www.morasha.com.br/biografias/as-muitas-vidas-de-golda-meir.html




quinta-feira, 9 de março de 2023

CINEMA - Por Bruno Szlak: Shtizel

 

SHTISEL: A ORTODOXIA JUDAICA CHEGA A TELEVISÃO

Bruno Szlak

 



Dikla Barkai, produtora da série Shtisel para a televisão israelense, em entrevista ao jornal Yediot Ahronot, diz o seguinte ao se referir sobre a comunidade judaica ortodoxa:

“é uma comunidade que está muito próxima a nós e ao mesmo tempo nós não sabemos exatamente o que se passa nela e eu penso que essa série é sobre pessoas que realmente vivem nessa comunidade e assim você passa a conhecer essas pessoas. Mas, ao final do dia, quando você vê a série, você sente que é sobre você. Os conflitos são os mesmos que os nossos.”

 

A série recebeu esse nome de um restaurante de comida típica judaica da Europa Oriental, localizado num bairro de Jerusalém, onde os autores, Uri Alon e Ionatan Indurski, se encontravam para discutir sobre a série. É importante observar que ambos vêm do mundo ortodoxo, ou seja, produziram a série com o olhar de quem já esteve nesse mundo e dele saiu. Isso conferiu à série uma fidelidade aos modos e costumes da comunidade ortodoxa que se refletem em uma verossimilhança e credibilidade na atuação dos diversos atores. Esses, por sua vez, buscaram em textos e documentários a formação para seus desempenhos, além de conviver com famílias ortodoxas para conhecer a língua ídiche e a experiência da vida ortodoxa em seus bairros. Temos a clareza que as personagens vivem diegeticamente na modernidade por elementos que nos são mostrados, como os telefones celulares, carros, entre outros. Mas, também, de alguma maneira tendemos a pensar nessas personagens como seres de um tempo passado por conta dos seus costumes e de elementos que nos remetem a esse outro tempo, tais como o gravador de fita cassete, ou as cartas manuscritas. Para nós, esses discursos fazem sentido porque nos localizamos numa posição onde nos sujeitamos aos sentidos, poder e regulação oferecidas pela tela, ainda que possamos ser questionadores ou possamos estabelecer um olhar distante e apartado.


Shtisel pode ser caracterizada como uma série melodramática, pois oferece muito mais atenção aos relacionamentos do que à trama propriamente dita e isso a aproxima da linguagem novelística: cria uma relação de empatia sentimental entre personagens e espectadores. É característico dos melodramas privados que muitos dos conflitos sejam resolvidos por casamento ou por uma volta arrependida para o lar. É fácil associar imediatamente Akiva e suas noivas e Lippe em sua volta para casa como sinais claros do gênero.

 

Shtisel, assim como muitas séries melodramáticas, bebe na fonte dos folhetins do século XIX. A narrativa parece não ter um final definido, bem como está segmentada em episódios. O fato é que a relação construída entre a série e o espectador fundamenta-se numa relação de promessa e de interrupção, especialmente com o sentido de criar espaços para a imaginação e a interpretação. Akiva parece que nunca irá se casar, mas nós esperamos que ele encontre a sua “metade”. Da mesma maneira, suas idas e vindas no mundo artístico refletem esse paradoxo entre não “querermos” que a situação profissional dele se resolva e ao mesmo tempo esperamos que ele possa se realizar enquanto artista num universo que pouco valoriza a arte. Já Sholem, parece indefinidamente buscar também uma substituta para sua falecida mulher. É nessa indefinição que o folhetim se baseia e se sustenta para prosseguir.

 

Há ainda que buscar como, nas construções de Shtisel, podemos viver a tensão entre a realidade e a fantasia. Temos que “viver” em um mundo cujos valores e caminhos não estaríamos dispostos a aceitar em nossa próprio cotidiano e realidade. Talvez alguns valores sejam incompreensíveis, algumas normas pareçam absurdas e ainda assim nos despertam admiração. Assim como os apartamentos simples e despojados, e as roupas puídas. Ou na cena onde Sholem diz a Akiva com desprezo (em relação ao que Akiva lhe diz que sua habilidade para desenhar é um presente divino): “Presente? Veja bem, talvez haja ali um vale para troca?” Não há sarcasmo, nenhuma beligerância. Uma frase cansada, que mostra uma falta de empatia de Sholem aos apelos individualistas e a sua sensibilidade artística. Em nossa realidade, isso nos enfureceria, nos tiraria do sério. Um pai que tenta destruir a alma artística de seu filho? Mas lá, na tela, nós rimos, porque esse cansaço, na maneira como a frase é dita, não nos mostra nenhuma maldade. Ela nos apresenta uma situação existencial e comportamental, e no momento em que a arte consegue capturá-la, ela torna-se emocionante e nos permite fazer parte desse universo.


Quais os mecanismos que operam nesse relacionamento que fazem o espectador retornar a seu lugar na sala de TV, nos mesmos dias da semana e nos mesmos horários?

 

Em Shtisel, acredito haver três elementos que operam nesse sentido: transgressão, exatidão e reflexividade.

 

Transgressão

 

Transgressão significa a ação humana de atravessar, exceder, ultrapassar, noções que pressupõem a existência de uma norma que estabelece e demarca limites. Em nosso caso, o que esperamos de um grupo religioso ortodoxo relativamente ao cumprimento das leis e regras a que estão submetidos? De maneira geral, nós seculares, entendemos que os membros do grupo que vive pautado pela estrita observância da halachá não pode transgredi-la. É no cumprimento das leis que fica demarcada a fronteira entre os que são ortodoxos e os que não são.

 

É noite de Shabat, Akiva vai a casa de Elisheva tentar reverter a decisão dela de não assumir um compromisso com ele. Após essa cena, vemos Elisheva em seu quarto pegando um radinho de pilha com fones de ouvido e a música que ouvimos é uma música que nada tem de judaica. Nesse momento, nessa cena, olhamos para Elisheva e percebemos que ela está transgredindo as leis de Shabat. Como afirmamos acima, um público que desconhece as leis de Shabat, que proíbem ligar ou desligar equipamentos elétricos, por exemplo, talvez não perceba isso como uma transgressão, mas como algo absolutamente normal. Mas, para o público judaico, seja em Israel ou fora dele, fica evidente a transgressão. Essa transgressão, entre outras, coloca Elisheva mais próxima do que nós somos como seculares, mas não só. Aceitamos a sua transgressão porque aceitamos as nossas. Passamos, nesse momento, a olhar Elisheva com outros olhos. Nos identificamos com seu sofrimento e entendemos que para suportá-lo é possível buscar elementos ainda que transgressores. Afinal, ela não está fazendo mal a ninguém.

 

Outra cena, com outra personagem também invade o terreno das transgressões. Ruchami para acalmar o seu pequeno irmão, que não para de chorar, na ausência da mãe, oferece seu peito para que o menino possa se acalmar. Mais uma vez, temos aqui a pequena transgressão, que não diz respeito a ninguém, que não prejudica ninguém, mas é uma transgressão. Nós, mais uma vez, podemos perdoar essa transgressão e o ato do perdão humaniza tanto a nós, como a personagem. No momento que ocorre a construção da humanidade na personagem, podemos nos identificar com ela e tomar suas alegrias e tristezas como similares as nossas.

 

Exatidão

 

A construção de toda a série está permeada pela exatidão de como os ortodoxos vivem. A língua, uma mistura de ídiche com hebraico, as roupas, as barbas, as casas, a comida, etc. mostram em detalhe as características do grupo e permitem ao espectador possuidor dos códigos de conhecimento sobre os ortodoxos desfrutar dessa exatidão e olhar para a série com o reconhecimento da verossimilhança do que ele vê diariamente nas ruas de um bairro ortodoxo. O que ocorre com o espectador que não possui os códigos para ler todos os detalhes dessa exatidão? Por exemplo, quando Akiva vai visitar Elisheva em seu apartamento em Bnei Brak, a porta de entrada é mantida entreaberta. O costume na ortodoxia é que um homem e uma mulher que não sejam casados ou da mesma família não podem ficar num ambiente com a porta fechada, pois isso pode suscitar dúvidas sobre o caráter de moderação e modéstia da mulher. Há outros exemplos, como a questão da televisão com a bobe Malka. Certamente Shtisel foi pensada para ser vista por um público judeu em Israel ou fora de Israel, que pudesse compreender todas essas nuances que a exatidão mostrada desvela. Acredito que aquele espectador não judeu talvez perca esses pequenos detalhes que enriquecem e aproximam mais ainda o espectador que lê esses códigos com clareza, mas ainda assim, esse espectador consegue desfrutar da vida dessas personagens de um grupo singular.

 

Reflexividade

 

A série utiliza em alguns momentos mecanismos de reflexividade, colocando-se como se ela mesma assumisse o papel de realidade frente a uma meta-fantasia. Essas cenas são aquelas onde aparece o aparelho de TV, todas elas ligadas a  bobe Malka. A neve do sonho de Akiva e a neve televisiva do fio arrancado no quarto da Bobe, são espelhos que nos colocam como espectadores, que por mais que nos identifiquemos como tal, ainda podemos empatizar com as personagens. Essa troca de posições entre nós e as personagens (que passam a ser espectadores) nos dá a chance de também nos “sentir” como as personagens. Mais contundente ainda é a cena final da temporada. Bobe Malka está em coma no hospital (fruto de uma transgressão - ela cai das escadas porque quer ver televisão no térreo, já que em determinado momento ela pede para tirar a TV de seu quarto, mas já não consegue suportar ficar longe da TV). Dentro de sua mente ocorre a cena: a câmera vai se afastando da cena em que Akiva e Sholem estão sentados junto a cama da bobe Malka no hospital. Na medida que isso ocorre, a cena que estamos vendo em nossa televisão passa a ser vista no enquadramento de uma outra televisão, como se lá estivesse ocorrendo, como uma ficção dentro de uma ficção (para nós espectadores). Agora, em nossa tela, Bobe Malka e seu falecido marido estão vestidos de branco, sentados no sofá assistindo a televisão. O marido pergunta: “o que você decidiu? Vai ficar por aqui ou vai voltar?” Bobe Malka nada responde (certamente esse é um gancho para o início da 2a temporada da série).

 

Essa reflexividade funciona como um mecanismo de identificação porque nos coloca no mesmo lugar que as personagens. As personagens também assistem televisão, acompanham os dramas como se fossem seus. É assim que também nos identificamos com bobe Malka, como já abordado, que coloca os nomes das personagens de sua novela no livro de rezas, para rezar por elas todos os dias.

 

Enfim, a bobe Malka somos todos nós. Lembrando o que John Ellis afirma em seu The Performance on Television of Sincerely Felt Emotions: “... há um mundo de distância entre reconhecer indivíduos que são ‘assim como nós’ do que ‘como nós’”. Para que vejamos bobe Malka como nós, precisamos compartilhar um determinado repertório cultural, sensitivo e emocional. É apenas quando bobe Malka passa a ver televisão e também se identificar com as personagens que ela vê na tela que o mecanismo para compartilhar os repertórios se estabelece. Além disso, temos uma imagem de nós mesmos como bonitos e valentes e dos outros, que são diferentes, não. Temos que, de alguma maneira, buscar os elementos de compartilhamento para também ver a bobe Malka como bonita assim como nós. Da mesma maneira que ela, não gostamos quando alguém “puxa o nosso fio” e nos desconecta de mundos que gostaríamos de olhar e compartilhar. Na medida em que somos “desconectados” do mundo, perdemos as nossas referências e nosso olhar mira o vazio assim como o olhar da bobe Malka para a neve televisiva.