Matan Onyameh (esquerda) em 'Angels in America,' no Cameri Theater. Foto Oded Antman |
“Sou judeu, negro e gay. Com o que está
acontecendo em Israel, eu deveria ser crucificado[1]”. Esta
afirmação é do ator Matan Onyameh, que enfrentou abusos e o racismo até que
pudesse realizar seu sonho: estrelar nos palcos de Tel Aviv. Agora, com um
papel em “Angels in America”, alcança seu objetivo em sua pátria. Mas, num
momento muito delicado e de grande fratura da sociedade israelense, há no ar a
incerteza de manutenção da estrutura judicial, de um futuro democrático e de
respeito à diversidade social.
Diversidade refletida na peça “Angels in
America[2]”,
explorando a temática da tolerância, como também de um D-us que é descrito como
um grande Aleph flamejante. Este D-us teatral cria o Universo através
da cópula com seus anjos que são oniscientes, mas incapazes de criar ou mudar
por conta própria. Com isto, D-us fica entediado com a personalidade
destas criaturas passivas, criando assim uma humanidade com o poder de mudar e
criar, surgindo o livre arbítrio.
Onyameh estreia sua peça no Teatro Cameri,
estabelecido em Tel Aviv desde 1944, antes da fundação do Estado de Israel. É
um dos principais teatros do país, localizado no Centro de Artes Performativas
da cidade mais israelense do país e atrai cerca de 900 mil espectadores por
ano. É conhecido como um local de resistência, de reivindicação social democrática
e diversa. O ator interpreta Belize, uma ex-drag queen e amante de Walter (Elad
Atrakchi). Também interpreta Mr. Lies, uma personagem que aparece nas
alucinações de Harper Pitt (Avigail Harari), a esposa instável de um advogado
mórmon.
Essa peça é parte de uma grande polêmica por
onde passa, não de hoje, mas já de muitos anos, por ser classificada como parte
do roteiro da “guerra cultural[3]” travada em nossa geração.
O tratamento franco da homossexualidade, da AIDS, a nudez e o debate franco da
fragilidade da vida, bem como da natureza do Divino, gera reações furiosas dos
grupos conservadores e religiosos ao redor do Mundo desde 1991. Não é diferente
em Israel, principalmente neste momento.
Mas Israel não é careta, como diriam em minha geração. O Povo
e o Estado de Israel sempre foram caracterizados pela capacidade de inovação
civilizatória. Como afirma o filosofo alemão Peter Sloterdijk, “o monoteísmo
judaico nasceu como uma teologia de protesto[4]”.
Não é à toa que o Estado de Israel seja polo de inovação tecnológica, tenha
universidades comparáveis com as da Europa e Estados Unidos, seja um centro de
pesquisa e desenvolvimento dos mais avançados do Planeta. O judaísmo é
civilizatório e moderno.
Tais
aspectos vão ao encontro ao pensamento de Mordecai M. Kaplan[5],
o pai do reconstrucionismo judaico e que nos brinda todos os Shabatot no Esh Tamid com um
Alênu inclusivo, retirando a linguagem de “eleição de Israel entre os povos”.
Kaplan afirma que o judaísmo é moderno e avançado em suas proposições de forma
civilizatória, por isso da reconstrução dos conceitos litúrgicos. Este grande
pensador moderno judaico é promotor de mudanças profundas no modo de ver da
teologia judaica, mas também na forma judaica de entender a política social.
Kaplan sustenta e propõe que a “governança[6]” da sinagoga deva ser democrática.
Que o pensar democrático é o que sustenta a comunidade judaica da diáspora e
ajudou a fundar o Estado Judeu. Ainda, afirma que as diversas correntes
judaicas[7] creem que o grande diferencial
do judeu seja nossa identidade religiosa, ou mesmo nossas correntes de pensamento
teológicos.
No entanto, Kaplan sustenta que o judaísmo tem
como fundamental motor de desenvolvimento sua organização comunitária democrática
e nada hierárquica. Por sua vez, esta governança organizacional democrática é
que marca a forma de pensar e agir do judeu. E, arrisco a dizer, contribui para
a consolidação do movimento sionista e da criação do Estado de Israel.
Hoje talvez possamos acrescentar que a garantia
da diversidade de opiniões - que sempre marcou a história dos judeus e do
judaísmo - é o que nos manteve vivos em um Mundo que nos perseguiu e nos matou
por sermos diferentes. Vejam as discussões Talmúdicas, como marcam nossa
maneira de pensar e de agir. São debates infindáveis e acirrados, mas que
respeitam as diversas opiniões das minorias ou de maiorias.
O Talmud impacta na forma de pensar do judeu,
de nossas organizações, bem como na forma de organização de nossas comunidades.
Tal maneira de pensar e os debates promovem na prática um processo de
desenvolvimento do judaísmo, assim como a inclusão de pequenos grupos, mesmo
que seja de forma lenta, para os críticos.
Ao longo dos tempos as comunidades promoveram
inclusão e a diversidade foi a marca. E temos que lembrar que instituições e
organizações surgiram antes do Estado de Israel para defender nosso Povo e seus
interesses. Como exemplo, muito conhecido, a KKL[8] ou o Teatro Cameri em Tel Aviv,
que mencionei, espaço de resistência cultural israelense. Está no DNA do nosso
Povo e do Estado de Israel a defesa da ética, da justiça, das minorias, do
diferente.
Portanto, faz parte de nossa cultura, como
afirmou Yurval Harari em um belo artigo intitulado “They’ve forgotten what
it means to be Jewish[9]”, (Eles esqueceram o
que significa ser judeu – tradução livre). O escritor de “Uma breve
história da humanidade” que conquistou milhões de leitores ao redor do
Planeta, afirmou, que “...quando 99% comemoravam o Natal, os judeus
comemoravam o Hanukkah. Enquanto 99% jejuavam no Ramadã, os judeus
jejuavam no Yom Kippur... Enquanto 99% comiam carne de porco, os judeus comiam
knaidel[10].”
Nossa existência como Povo ensinou ao Mundo que
“a (s) minoria (s) também tem direitos. Mesmo que haja mais de vocês do
que de nós, ainda podemos comer o que quisermos, e vocês não deveriam nos dizer
como viver[11]”.
Nossa existência coletiva foi e é uma afirmação da possibilidade de existência
de minorias ao redor Planeta. E me parece que, neste momento, parte do Governo em
Israel esqueceu nosso papel no Mundo em defesa das minorias e porque nós, ainda,
somos minoria no Mundo do século XXI.
Nosso Povo é diverso, precisamos compreender
melhor a nossa diversidade. Temos judeus negros, judeus latinos, judeus anglos
saxões, judeus negros, judeus gays, judeus altos e baixos, judeus gordos e
magros, judeus bonitos e também feios. Judeus de olhos grandes e de nariz de
batata, mas também olhos miúdos e de olhos castanhos. Judeus de esquerda e de
direita, judeus liberais e conservadores. Judeus progressistas e judeus
retrógrados. Judeus monogâmicos e os que praticam poliamor.
A diversidade deve ser respeitada, todas, todos
e todis precisam ter seus direitos garantidos, na diáspora e em Israel. Apenas
e apenas, com democracia e Justiça, garantiremos estes direitos e a
continuidade do privilégio de viver na época em que existe o Estado de Israel. Sim,
temos que lembrar que é um privilégio viver em tempos em que existe um Estado
Judeu Democrático.
Privilégio que foi compreendido por um turista
americano[12],
quando entrou em um correio para enviar para um pacote, com itens comprados em
Israel, durante sua visita. Quando ele se aproximou do balconista, o
pacote foi pesado. Como era costume, antes de haver máquinas de postagem com
etiquetas autocolantes, o balconista contou os selos, entregou ao cliente
(turista) para lamber, colar em seu pacote e despachar.
O cliente (o turista) ficou horrorizado e logo disse
muito bravo: “...na América, o carteiro faz isso para gente!” Uma
outra pessoa na fila, deu um tapinha no ombro do turista e disse: “Sabe,
há 2.000 anos esperamos ter o privilégio de lamber selos que dizem “Estado
de Israel” e o funcionário não quer tirar esse privilégio de você!"
Privilégio civilizatório, que gerou Onyameh,
gay e ator de 30 anos, nascido em Ramat Gan, com uma mãe israelense e um pai
ganês. Israel que gerou como fruto os pensamentos de Mordecai M. Kaplan,
pai do reconstrucionismo, de um judaísmo moderno, civilizatório e inclusivo. O
Estado de Israel é civilizatório por ter gerado Yuval Harari, gay, ateu,
historiador e escritor. Por isso, não podemos esquecer o que significa ser
judeu, o que significa defender a democracia e justiça.
Justiça que será em breve lembrada em Pessach,
quando estivermos confortavelmente sentados em nossas mesas, com nossas
famílias, amigos e em comunidade. Teremos como mitzvah que recordar que fomos
estrangeiros, que fomos escravos e precisamos tratar as minorias com justiça (“Tzedek
Tzedek Tirdof” – Devarim 16:18–21:9). Assim, que neste ano tenhamos
mais uma lembrança: que temos o privilégio de viver em uma época em que existe
um Estado Judeu, Democrático e Justo.
[1] https://www.haaretz.com/israel-news/2023-03-05/ty-article-magazine/.premium/im-jewish-black-and-gay-with-whats-going-on-in-israel-now-i-should-be-crucified/00000186-9dc3-d2ea-af96-ddc3fe930000
[2]
É
uma peça de duas partes do dramaturgo americano Tony Kushner que
estreou em 1991.
[3]
Entenda
a guerra cultural: https://es.wikipedia.org/wiki/Guerra_cultural
[4] Do Livro “O Zelo de
Deus”, Editora UNESP, 2016.
[5] Mordecai Menahem Kaplan
(11 de junho de 1881 a 08 de novembro de 1983), nasceu em um vilarejo nos
arredores de Vilna, na Lituânia, em uma família tradicional de judeus ortodoxos
mitnagdim (não chassídicos). Foi rabino, ensaísta e educador e co-fundador do
movimento reconstrucionista, com o seu genro Ira Eisenstein.
[6]
Governança
corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são
dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre
sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle
e demais partes interessadas. Site Instituto Brasileiro de Governança
Corporativa (IBGC), em 20.03.2023 às 8:55h.
[7] La Civilización de Israel
en la Vida Moderna, Colección Sefer, Argentina - 2006 - pg. 53.
[8] Fundo Nacional Judaico
- Keren Kayemet Leyisrael, fundado em 1901.
[9]
https://blogs.timesofisrael.com/theyve-forgotten-what-it-means-to-be-jewish/
[10]
https://blogs.timesofisrael.com/theyve-forgotten-what-it-means-to-be-jewish/
[11]
https://blogs.timesofisrael.com/theyve-forgotten-what-it-means-to-be-jewish/
[12]
https://www.jpost.com/opinion/article-731472
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