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quinta-feira, 23 de março de 2023

Acontece - Israel Civilizatório

 

Matan Onyameh (esquerda) em 'Angels in America,' no Cameri Theater. Foto Oded Antman



Sou judeu, negro e gay. Com o que está acontecendo em Israel, eu deveria ser crucificado[1]”. Esta afirmação é do ator Matan Onyameh, que enfrentou abusos e o racismo até que pudesse realizar seu sonho: estrelar nos palcos de Tel Aviv. Agora, com um papel em “Angels in America”, alcança seu objetivo em sua pátria. Mas, num momento muito delicado e de grande fratura da sociedade israelense, há no ar a incerteza de manutenção da estrutura judicial, de um futuro democrático e de respeito à diversidade social.

Diversidade refletida na peça “Angels in America[2], explorando a temática da tolerância, como também de um D-us que é descrito como um grande Aleph flamejante. Este D-us teatral cria o Universo através da cópula com seus anjos que são oniscientes, mas incapazes de criar ou mudar por conta própria. Com isto, D-us fica entediado com a personalidade destas criaturas passivas, criando assim uma humanidade com o poder de mudar e criar, surgindo o livre arbítrio.

Onyameh estreia sua peça no Teatro Cameri, estabelecido em Tel Aviv desde 1944, antes da fundação do Estado de Israel. É um dos principais teatros do país, localizado no Centro de Artes Performativas da cidade mais israelense do país e atrai cerca de 900 mil espectadores por ano. É conhecido como um local de resistência, de reivindicação social democrática e diversa. O ator interpreta Belize, uma ex-drag queen e amante de Walter (Elad Atrakchi). Também interpreta Mr. Lies, uma personagem que aparece nas alucinações de Harper Pitt (Avigail Harari), a esposa instável de um advogado mórmon. 

Essa peça é parte de uma grande polêmica por onde passa, não de hoje, mas já de muitos anos, por ser classificada como parte do roteiro da “guerra cultural[3]” travada em nossa geração. O tratamento franco da homossexualidade, da AIDS, a nudez e o debate franco da fragilidade da vida, bem como da natureza do Divino, gera reações furiosas dos grupos conservadores e religiosos ao redor do Mundo desde 1991. Não é diferente em Israel, principalmente neste momento.

Mas Israel não é careta, como diriam em minha geração. O Povo e o Estado de Israel sempre foram caracterizados pela capacidade de inovação civilizatória. Como afirma o filosofo alemão Peter Sloterdijk, “o monoteísmo judaico nasceu como uma teologia de protesto[4]”. Não é à toa que o Estado de Israel seja polo de inovação tecnológica, tenha universidades comparáveis com as da Europa e Estados Unidos, seja um centro de pesquisa e desenvolvimento dos mais avançados do Planeta. O judaísmo é civilizatório e moderno.

Tais aspectos vão ao encontro ao pensamento de Mordecai M. Kaplan[5], o pai do reconstrucionismo judaico e que nos brinda todos os Shabatot no Esh Tamid com um Alênu inclusivo, retirando a linguagem de “eleição de Israel entre os povos”. Kaplan afirma que o judaísmo é moderno e avançado em suas proposições de forma civilizatória, por isso da reconstrução dos conceitos litúrgicos. Este grande pensador moderno judaico é promotor de mudanças profundas no modo de ver da teologia judaica, mas também na forma judaica de entender a política social.

Kaplan sustenta e propõe que a “governança[6]” da sinagoga deva ser democrática. Que o pensar democrático é o que sustenta a comunidade judaica da diáspora e ajudou a fundar o Estado Judeu. Ainda, afirma que as diversas correntes judaicas[7] creem que o grande diferencial do judeu seja nossa identidade religiosa, ou mesmo nossas correntes de pensamento teológicos.

No entanto, Kaplan sustenta que o judaísmo tem como fundamental motor de desenvolvimento sua organização comunitária democrática e nada hierárquica. Por sua vez, esta governança organizacional democrática é que marca a forma de pensar e agir do judeu. E, arrisco a dizer, contribui para a consolidação do movimento sionista e da criação do Estado de Israel.

Hoje talvez possamos acrescentar que a garantia da diversidade de opiniões - que sempre marcou a história dos judeus e do judaísmo - é o que nos manteve vivos em um Mundo que nos perseguiu e nos matou por sermos diferentes. Vejam as discussões Talmúdicas, como marcam nossa maneira de pensar e de agir. São debates infindáveis e acirrados, mas que respeitam as diversas opiniões das minorias ou de maiorias.

O Talmud impacta na forma de pensar do judeu, de nossas organizações, bem como na forma de organização de nossas comunidades. Tal maneira de pensar e os debates promovem na prática um processo de desenvolvimento do judaísmo, assim como a inclusão de pequenos grupos, mesmo que seja de forma lenta, para os críticos.

Ao longo dos tempos as comunidades promoveram inclusão e a diversidade foi a marca. E temos que lembrar que instituições e organizações surgiram antes do Estado de Israel para defender nosso Povo e seus interesses. Como exemplo, muito conhecido, a KKL[8] ou o Teatro Cameri em Tel Aviv, que mencionei, espaço de resistência cultural israelense. Está no DNA do nosso Povo e do Estado de Israel a defesa da ética, da justiça, das minorias, do diferente. 

Portanto, faz parte de nossa cultura, como afirmou Yurval Harari em um belo artigo intitulado “They’ve forgotten what it means to be Jewish[9]”, (Eles esqueceram o que significa ser judeu – tradução livre). O escritor de “Uma breve história da humanidade” que conquistou milhões de leitores ao redor do Planeta, afirmou, que “...quando 99% comemoravam o Natal, os judeus comemoravam o Hanukkah. Enquanto 99% jejuavam no Ramadã, os judeus jejuavam no Yom Kippur... Enquanto 99% comiam carne de porco, os judeus comiam knaidel[10].”

Nossa existência como Povo ensinou ao Mundo que “a (s) minoria (s) também tem direitos. Mesmo que haja mais de vocês do que de nós, ainda podemos comer o que quisermos, e vocês não deveriam nos dizer como viver[11]”. Nossa existência coletiva foi e é uma afirmação da possibilidade de existência de minorias ao redor Planeta. E me parece que, neste momento, parte do Governo em Israel esqueceu nosso papel no Mundo em defesa das minorias e porque nós, ainda, somos minoria no Mundo do século XXI.

 

Nosso Povo é diverso, precisamos compreender melhor a nossa diversidade. Temos judeus negros, judeus latinos, judeus anglos saxões, judeus negros, judeus gays, judeus altos e baixos, judeus gordos e magros, judeus bonitos e também feios. Judeus de olhos grandes e de nariz de batata, mas também olhos miúdos e de olhos castanhos. Judeus de esquerda e de direita, judeus liberais e conservadores. Judeus progressistas e judeus retrógrados. Judeus monogâmicos e os que praticam poliamor.

A diversidade deve ser respeitada, todas, todos e todis precisam ter seus direitos garantidos, na diáspora e em Israel. Apenas e apenas, com democracia e Justiça, garantiremos estes direitos e a continuidade do privilégio de viver na época em que existe o Estado de Israel. Sim, temos que lembrar que é um privilégio viver em tempos em que existe um Estado Judeu Democrático.

Privilégio que foi compreendido por um turista americano[12], quando entrou em um correio para enviar para um pacote, com itens comprados em Israel, durante sua visita. Quando ele se aproximou do balconista, o pacote foi pesado. Como era costume, antes de haver máquinas de postagem com etiquetas autocolantes, o balconista contou os selos, entregou ao cliente (turista) para lamber, colar em seu pacote e despachar.

O cliente (o turista) ficou horrorizado e logo disse muito bravo: “...na América, o carteiro faz isso para gente!” Uma outra pessoa na fila, deu um tapinha no ombro do turista e disse: “Sabe, há 2.000 anos esperamos ter o privilégio de lamber selos que dizem “Estado de Israel” e o funcionário não quer tirar esse privilégio de você!

Privilégio civilizatório, que gerou Onyameh, gay e ator de 30 anos, nascido em Ramat Gan, com uma mãe israelense e um pai ganês. Israel que gerou como fruto os pensamentos de Mordecai M. Kaplan, pai do reconstrucionismo, de um judaísmo moderno, civilizatório e inclusivo. O Estado de Israel é civilizatório por ter gerado Yuval Harari, gay, ateu, historiador e escritor. Por isso, não podemos esquecer o que significa ser judeu, o que significa defender a democracia e justiça.

Justiça que será em breve lembrada em Pessach, quando estivermos confortavelmente sentados em nossas mesas, com nossas famílias, amigos e em comunidade. Teremos como mitzvah que recordar que fomos estrangeiros, que fomos escravos e precisamos tratar as minorias com justiça (“Tzedek Tzedek Tirdof” – Devarim 16:18–21:9). Assim, que neste ano tenhamos mais uma lembrança: que temos o privilégio de viver em uma época em que existe um Estado Judeu, Democrático e Justo.

 

 Marcelo Cardoso



[1] https://www.haaretz.com/israel-news/2023-03-05/ty-article-magazine/.premium/im-jewish-black-and-gay-with-whats-going-on-in-israel-now-i-should-be-crucified/00000186-9dc3-d2ea-af96-ddc3fe930000

[2] É uma peça de duas partes do dramaturgo americano Tony Kushner que estreou em 1991.

[3] Entenda a guerra cultural: https://es.wikipedia.org/wiki/Guerra_cultural

[4] Do Livro “O Zelo de Deus”, Editora UNESP, 2016.

[5] Mordecai Menahem Kaplan (11 de junho de 1881 a 08 de novembro de 1983), nasceu em um vilarejo nos arredores de Vilna, na Lituânia, em uma família tradicional de judeus ortodoxos mitnagdim (não chassídicos). Foi rabino, ensaísta e educador e co-fundador do movimento reconstrucionista, com o seu genro Ira Eisenstein.

 

[6] Governança corporativa é o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. Site Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), em 20.03.2023 às 8:55h.

[7] La Civilización de Israel en la Vida Moderna, Colección Sefer, Argentina - 2006 - pg. 53.

[8] Fundo Nacional Judaico - Keren Kayemet Leyisrael, fundado em 1901.

[9] https://blogs.timesofisrael.com/theyve-forgotten-what-it-means-to-be-jewish/

[10] https://blogs.timesofisrael.com/theyve-forgotten-what-it-means-to-be-jewish/

[11] https://blogs.timesofisrael.com/theyve-forgotten-what-it-means-to-be-jewish/

[12] https://www.jpost.com/opinion/article-731472


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