SHTISEL:
A ORTODOXIA JUDAICA CHEGA A TELEVISÃO
Bruno
Szlak
Dikla
Barkai, produtora da série Shtisel para a televisão israelense, em entrevista
ao jornal Yediot Ahronot, diz o
seguinte ao se referir sobre a comunidade judaica ortodoxa:
“é uma comunidade que está muito próxima a nós e ao mesmo tempo nós não sabemos exatamente o que se passa nela e eu penso que essa série é sobre pessoas que realmente vivem nessa comunidade e assim você passa a conhecer essas pessoas. Mas, ao final do dia, quando você vê a série, você sente que é sobre você. Os conflitos são os mesmos que os nossos.”
A série recebeu esse nome de um restaurante de comida típica judaica da Europa Oriental, localizado num bairro de Jerusalém, onde os autores, Uri Alon e Ionatan Indurski, se encontravam para discutir sobre a série. É importante observar que ambos vêm do mundo ortodoxo, ou seja, produziram a série com o olhar de quem já esteve nesse mundo e dele saiu. Isso conferiu à série uma fidelidade aos modos e costumes da comunidade ortodoxa que se refletem em uma verossimilhança e credibilidade na atuação dos diversos atores. Esses, por sua vez, buscaram em textos e documentários a formação para seus desempenhos, além de conviver com famílias ortodoxas para conhecer a língua ídiche e a experiência da vida ortodoxa em seus bairros. Temos a clareza que as personagens vivem diegeticamente na modernidade por elementos que nos são mostrados, como os telefones celulares, carros, entre outros. Mas, também, de alguma maneira tendemos a pensar nessas personagens como seres de um tempo passado por conta dos seus costumes e de elementos que nos remetem a esse outro tempo, tais como o gravador de fita cassete, ou as cartas manuscritas. Para nós, esses discursos fazem sentido porque nos localizamos numa posição onde nos sujeitamos aos sentidos, poder e regulação oferecidas pela tela, ainda que possamos ser questionadores ou possamos estabelecer um olhar distante e apartado.
Shtisel
pode ser caracterizada como uma série melodramática, pois oferece muito mais
atenção aos relacionamentos do que à trama propriamente dita e isso a aproxima
da linguagem novelística: cria uma relação de empatia sentimental entre
personagens e espectadores. É característico dos melodramas privados que muitos
dos conflitos sejam resolvidos por casamento ou por uma volta arrependida para
o lar. É fácil associar imediatamente Akiva e suas noivas e Lippe em sua volta
para casa como sinais claros do gênero.
Shtisel,
assim como muitas séries melodramáticas, bebe na fonte dos folhetins do século
XIX. A narrativa parece não ter um final definido, bem como está segmentada em
episódios. O fato é que a relação construída entre a série e o espectador
fundamenta-se numa relação de promessa e de interrupção, especialmente com o
sentido de criar espaços para a imaginação e a interpretação. Akiva parece que
nunca irá se casar, mas nós esperamos que ele encontre a sua “metade”. Da mesma
maneira, suas idas e vindas no mundo artístico refletem esse paradoxo entre não
“querermos” que a situação profissional dele se resolva e ao mesmo tempo
esperamos que ele possa se realizar enquanto artista num universo que pouco
valoriza a arte. Já Sholem, parece indefinidamente buscar também uma substituta
para sua falecida mulher. É nessa indefinição que o folhetim se baseia e se
sustenta para prosseguir.
Há
ainda que buscar como, nas construções de Shtisel, podemos viver a tensão entre
a realidade e a fantasia. Temos que “viver” em um mundo cujos valores e
caminhos não estaríamos dispostos a aceitar em nossa próprio cotidiano e
realidade. Talvez alguns valores sejam incompreensíveis, algumas normas pareçam
absurdas e ainda assim nos despertam admiração. Assim como os apartamentos simples e despojados, e as roupas
puídas. Ou na cena onde Sholem diz a Akiva com desprezo (em relação ao que
Akiva lhe diz que sua habilidade para desenhar é um presente divino):
“Presente? Veja bem, talvez haja ali um vale para troca?” Não há sarcasmo, nenhuma
beligerância. Uma frase cansada, que mostra uma falta de empatia de Sholem aos
apelos individualistas e a sua sensibilidade artística. Em nossa realidade,
isso nos enfureceria, nos tiraria do sério. Um pai que tenta destruir a alma
artística de seu filho? Mas lá, na
tela, nós rimos, porque esse cansaço, na maneira como a frase é dita, não nos
mostra nenhuma maldade. Ela nos apresenta uma situação existencial e
comportamental, e no momento em que a arte consegue capturá-la, ela torna-se
emocionante e nos permite fazer parte desse universo.
Quais
os mecanismos que operam nesse relacionamento que fazem o espectador retornar a
seu lugar na sala de TV, nos mesmos dias da semana e nos mesmos horários?
Em
Shtisel, acredito haver três elementos que operam nesse sentido: transgressão,
exatidão e reflexividade.
Transgressão
Transgressão significa a ação humana de
atravessar, exceder, ultrapassar, noções que pressupõem a existência de uma
norma que estabelece e demarca limites. Em nosso caso, o que esperamos de um
grupo religioso ortodoxo relativamente ao cumprimento das leis e regras a que
estão submetidos? De maneira geral, nós seculares, entendemos que os membros do
grupo que vive pautado pela estrita observância da halachá não pode transgredi-la. É no cumprimento das leis que fica
demarcada a fronteira entre os que são ortodoxos e os que não são.
É
noite de Shabat, Akiva vai a casa de Elisheva tentar reverter a decisão dela de
não assumir um compromisso com ele. Após essa cena, vemos Elisheva em seu quarto
pegando um radinho de pilha com fones de ouvido e a música que ouvimos é uma
música que nada tem de judaica. Nesse momento, nessa cena, olhamos para
Elisheva e percebemos que ela está transgredindo as leis de Shabat. Como
afirmamos acima, um público que desconhece as leis de Shabat, que proíbem ligar
ou desligar equipamentos elétricos, por exemplo, talvez não perceba isso como
uma transgressão, mas como algo absolutamente normal. Mas, para o público
judaico, seja em Israel ou fora dele, fica evidente a transgressão. Essa
transgressão, entre outras, coloca Elisheva mais próxima do que nós somos como
seculares, mas não só. Aceitamos a sua transgressão porque aceitamos as nossas.
Passamos, nesse momento, a olhar Elisheva com outros olhos. Nos identificamos com
seu sofrimento e entendemos que para suportá-lo é possível buscar elementos
ainda que transgressores. Afinal, ela não está fazendo mal a ninguém.
Outra
cena, com outra personagem também invade o terreno das transgressões. Ruchami
para acalmar o seu pequeno irmão, que não para de chorar, na ausência da mãe,
oferece seu peito para que o menino possa se acalmar. Mais uma vez, temos aqui
a pequena transgressão, que não diz respeito a ninguém, que não prejudica
ninguém, mas é uma transgressão. Nós, mais uma vez, podemos perdoar essa
transgressão e o ato do perdão humaniza tanto a nós, como a personagem. No
momento que ocorre a construção da humanidade na personagem, podemos nos
identificar com ela e tomar suas alegrias e tristezas como similares as nossas.
Exatidão
A
construção de toda a série está permeada pela exatidão de como os ortodoxos
vivem. A língua, uma mistura de ídiche com hebraico, as roupas, as barbas, as
casas, a comida, etc. mostram em detalhe as características do grupo e permitem
ao espectador possuidor dos códigos de conhecimento sobre os ortodoxos
desfrutar dessa exatidão e olhar para a série com o reconhecimento da
verossimilhança do que ele vê diariamente nas ruas de um bairro ortodoxo. O que
ocorre com o espectador que não possui os códigos para ler todos os detalhes
dessa exatidão? Por exemplo, quando Akiva vai visitar Elisheva em seu
apartamento em Bnei Brak, a porta de entrada é mantida entreaberta. O costume
na ortodoxia é que um homem e uma mulher que não sejam casados ou da mesma
família não podem ficar num ambiente com a porta fechada, pois isso pode
suscitar dúvidas sobre o caráter de moderação e modéstia da mulher. Há outros
exemplos, como a questão da televisão com a bobe
Malka. Certamente Shtisel foi pensada para ser vista por um público judeu em
Israel ou fora de Israel, que pudesse compreender todas essas nuances que a
exatidão mostrada desvela. Acredito que aquele espectador não judeu talvez
perca esses pequenos detalhes que enriquecem e aproximam mais ainda o
espectador que lê esses códigos com clareza, mas ainda assim, esse espectador
consegue desfrutar da vida dessas personagens de um grupo singular.
Reflexividade
A
série utiliza em alguns momentos mecanismos de reflexividade, colocando-se como
se ela mesma assumisse o papel de realidade frente a uma meta-fantasia. Essas
cenas são aquelas onde aparece o aparelho de TV, todas elas ligadas a bobe
Malka. A neve do sonho de Akiva e a neve televisiva do fio arrancado no quarto
da Bobe, são espelhos que nos colocam como espectadores, que por mais que nos
identifiquemos como tal, ainda podemos empatizar com as personagens. Essa troca
de posições entre nós e as personagens (que passam a ser espectadores) nos dá a
chance de também nos “sentir” como as personagens. Mais contundente ainda é a
cena final da temporada. Bobe Malka
está em coma no hospital (fruto de uma transgressão - ela cai das escadas
porque quer ver televisão no térreo, já que em determinado momento ela pede
para tirar a TV de seu quarto, mas já não consegue suportar ficar longe da TV).
Dentro de sua mente ocorre a cena: a câmera vai se afastando da cena em que
Akiva e Sholem estão sentados junto a cama da bobe Malka no hospital. Na medida que isso ocorre, a cena que
estamos vendo em nossa televisão passa a ser vista no enquadramento de uma
outra televisão, como se lá estivesse ocorrendo, como uma ficção dentro de uma
ficção (para nós espectadores). Agora, em nossa tela, Bobe Malka e seu falecido marido estão vestidos de branco, sentados
no sofá assistindo a televisão. O marido pergunta: “o que você decidiu? Vai
ficar por aqui ou vai voltar?” Bobe
Malka nada responde (certamente esse é um gancho para o início da 2a
temporada da série).
Essa
reflexividade funciona como um mecanismo de identificação porque nos coloca no
mesmo lugar que as personagens. As personagens também assistem televisão,
acompanham os dramas como se fossem seus. É assim que também nos identificamos
com bobe Malka, como já abordado, que
coloca os nomes das personagens de sua novela no livro de rezas, para rezar por
elas todos os dias.
Enfim,
a bobe Malka somos todos nós.
Lembrando o que John Ellis afirma em seu The Performance on
Television of Sincerely Felt Emotions: “... há um mundo de
distância entre reconhecer indivíduos que são ‘assim como nós’ do que ‘como
nós’”. Para que vejamos bobe Malka
como nós, precisamos compartilhar um determinado repertório cultural, sensitivo
e emocional. É apenas quando bobe
Malka passa a ver televisão e também se identificar com as personagens que ela
vê na tela que o mecanismo para compartilhar os repertórios se estabelece. Além
disso, temos uma imagem de nós mesmos como bonitos e valentes e dos outros, que
são diferentes, não. Temos que, de alguma maneira, buscar os elementos de
compartilhamento para também ver a bobe
Malka como bonita assim como nós. Da mesma maneira que ela, não gostamos quando
alguém “puxa o nosso fio” e nos desconecta de mundos que gostaríamos de olhar e
compartilhar. Na medida em que somos “desconectados” do mundo, perdemos as
nossas referências e nosso olhar mira o vazio assim como o olhar da bobe Malka para a neve televisiva.
Essa série é maravilhosa, assisti 2 vezes por completo! Eu não sou judeu, mas eu peguei todos os ganchos mencionados na matéria, Elishiva ouvindo rádio no sábado, a porta aberta quando pessoas não assadas estão juntos etc.
ResponderExcluirEu adoro séries israelense, assisti todas que tem na Netflix, Frauda também é uma série boa.
O filme nada ortodoxa também é um bom filme, porém achei secular demais.