Marcadores

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Iachad (juntos - יחד) - por André Naves: Beethoven enxergou o luar

 Por André Naves

          


Sempre que as pessoas estão juntas, elas costumam conversar: falam de acontecimentos, ideias, lembranças e até algumas fofocas... tudo que falam entre si sempre tem um sabor de memória, de lenda...

          A gente nunca sabe da verdade... a turma ouve um conto e aumenta um ponto, como se diz. A memória não tem a ver com a realidade. O nosso cérebro monta, a partir de nossas mais diversas lembranças e experiências, uma nova versão dos fatos. Ninguém faz isso por mal! Pelo contrário. É um mecanismo humano, demasiado humano... parece até que nossa cachola gosta de construir poesias concretas com nossas memórias!

O ser humano é, essencialmente, um poeta involuntário. O que é a realidade senão uma poesia dos fatos?

Por isso prefiro as lendas. É que os fatos podem ser interpretados de maneiras tão diversas que acabam sendo utilizados para legitimar as mais profundas barbaridades.

Sempre que a gente precisa jogar pimenta nos olhos mais vulneráveis, a gente apresenta os chamados dados científicos, para justificar, e revestir de pretensa certeza, a dura injustiça.

Mas, não é a dúvida a essência da ciência? Se todos os cisnes são brancos, o que eu faço quando aparece um cisne negro? E um multicolorido?

A lenda e os símbolos, pelo contrário, evoluem conosco. Quando eu era menino, eu gostava das coisas de menino, agora eu cresci e abandonei as roupas da infância, dizem...

No fim, o entendimento daquilo que é real é muito mais fácil de ser entendido pelos símbolos. Esses, como todos nós, evoluem com a história.

Vamos resumir? Uma lenda nunca perde a validade. O dado, sim.

O ser humano, assim, percebe a realidade pela lente das lendas e símbolos. Ele enxerga não com os olhos, mas com a alma. A realidade é esse caleidoscópio colorido formado pelos diferentes entendimentos acerca de uma mesma lenda poética...

Eu costumo falar que a gente só entra no mundo dos fatos pelo caminho musical dos símbolos. Foi pelos símbolos musicais que Beethoven, por exemplo, questionou as relações de poder e mando da sociedade do século XIX...

Foi assim que ele imortalizou conceitos tão diáfanos quanto concretos, como os da fraternidade, amizade e Humanidade.

Contam que ele era vizinho, em Bonn, de uma menininha cega...

Sabe o mais interessante? Ele era extremamente temperamental, rude e mal-educado com todos. Seus vizinhos não suportavam seus hábitos ranzinzas, sua cara amarrada, sua arrogância e, dizem as más línguas, suas péssimas noções de higiene...

Mas com a pequena Débora, as coisas eram outras. Ele se tornava gentil, amistoso, e até ensaiava sorrisos... O pai de Débora, seu Jacobus, não suportava o casmurro Ludwig, mas, qual remédio?

A pequena o adorava, e se deliciava com os acordes daquele velho pianista. A verdade é que a cada nota musical tocada ela enxergava formas e cores muito além do que todos ali poderiam imaginar.

Ela enxergava, em meio a tantas inconstâncias emocionais, a beleza daquele senhor. Ela enxergava a pedra preciosa dentro do carvão, a rosa que desabrochava do lamaçal...

ENXERGAR...

Certa tarde ela pediu para titio Ludwig ajuda para perceber o luar... ele se riu daquele capricho infantil...

Era aquela época do mês em que a lua vai se escondendo até sumir na escuridão da noite, para retornar, bem vagarosamente, a nos iluminar com seus raios de prata...

Nesse tempo do ano, dona Rute, mãe de Débora, assava um pãozinho meio redondo, bem cheiroso e extremamente saboroso.

Foi envolto nesse aroma que Beethoven fechou os olhos, enxergou o luar, e começou a dedilhar sua Sonata ao Luar. Beethoven escutou e enxergou, não com os sentidos, mas com a alma, e entendeu a Beleza da Alteridade!

Quando, dias depois, a Infante Débora reapareceu, ela trazia um pedaço daquele pãozinho... E lá, com a sonata já escrita, ele a tocou pela primeira vez...

Naquele instante Débora enxergou o Luar...

 

ANDRÉ NAVES

Especialista em Direitos Humanos e Sociais, Inclusão Social e Economia Política.

Defensor Público Federal. Escritor e Professor.

Conselheiro do Chaverim, grupo de assistência às pessoas com Deficiência Intelectual, além de diversas instituições voltadas à Inclusão Social.

Membro do LeCulam, da FISESP (Grupo de Inclusão das Pessoas com Deficiência da Federação Israelita de São Paulo).

Colaborador do Instituto FEFIG, para a promoção da Educação.

Membro do LIDE – Inclusão.

Comendador Cultural.

www.andrenaves.com

Instagram: @andrenaves.def


3 comentários:

  1. Enquanto o homem compreendeu as questões da existência humana através dos atributos e arquétipos aludidos pelos mitos antigos, algo presente nas fábulas tocava a alma de alguma forma, servindo como identificador de verdades, porém uma sociedade individualizada pelo patrimonialismo exacerbado, busca apenas escalar ao invés de elevar-se, pois não mede mais dias ações pelos impulsos da almas, mas sim pelas pílulas do consumo exacerbado. Isso implica na queda da apologia pelos contos de fada no mundo contemporâneo.

    ResponderExcluir
  2. Um relato muito interessante...

    ResponderExcluir
  3. A música faz isso c a gente, nos eleva a alma, transporta, transborda os sentimentos assim como a pintura 😍

    ResponderExcluir