Por André Naves
A gente nunca sabe da verdade... a
turma ouve um conto e aumenta um ponto, como se diz. A memória não tem a ver
com a realidade. O nosso cérebro monta, a partir de nossas mais diversas lembranças
e experiências, uma nova versão dos fatos. Ninguém faz isso por mal! Pelo
contrário. É um mecanismo humano, demasiado humano... parece até que nossa
cachola gosta de construir poesias concretas com nossas memórias!
O
ser humano é, essencialmente, um poeta involuntário. O que é a realidade senão
uma poesia dos fatos?
Por
isso prefiro as lendas. É que os fatos podem ser interpretados de maneiras tão
diversas que acabam sendo utilizados para legitimar as mais profundas
barbaridades.
Sempre
que a gente precisa jogar pimenta nos olhos mais vulneráveis, a gente apresenta
os chamados dados científicos, para justificar, e revestir de pretensa certeza,
a dura injustiça.
Mas,
não é a dúvida a essência da ciência? Se todos os cisnes são brancos, o que eu
faço quando aparece um cisne negro? E um multicolorido?
A
lenda e os símbolos, pelo contrário, evoluem conosco. Quando eu era menino, eu
gostava das coisas de menino, agora eu cresci e abandonei as roupas da infância,
dizem...
No
fim, o entendimento daquilo que é real é muito mais fácil de ser entendido
pelos símbolos. Esses, como todos nós, evoluem com a história.
Vamos
resumir? Uma lenda nunca perde a validade. O dado, sim.
O
ser humano, assim, percebe a realidade pela lente das lendas e símbolos. Ele
enxerga não com os olhos, mas com a alma. A realidade é esse caleidoscópio
colorido formado pelos diferentes entendimentos acerca de uma mesma lenda
poética...
Eu
costumo falar que a gente só entra no mundo dos fatos pelo caminho musical dos
símbolos. Foi pelos símbolos musicais que Beethoven, por exemplo, questionou as
relações de poder e mando da sociedade do século XIX...
Foi
assim que ele imortalizou conceitos tão diáfanos quanto concretos, como os da
fraternidade, amizade e Humanidade.
Contam
que ele era vizinho, em Bonn, de uma menininha cega...
Sabe
o mais interessante? Ele era extremamente temperamental, rude e mal-educado com
todos. Seus vizinhos não suportavam seus hábitos ranzinzas, sua cara amarrada,
sua arrogância e, dizem as más línguas, suas péssimas noções de higiene...
Mas
com a pequena Débora, as coisas eram outras. Ele se tornava gentil, amistoso, e
até ensaiava sorrisos... O pai de Débora, seu Jacobus, não suportava o casmurro
Ludwig, mas, qual remédio?
A
pequena o adorava, e se deliciava com os acordes daquele velho pianista. A
verdade é que a cada nota musical tocada ela enxergava formas e cores muito
além do que todos ali poderiam imaginar.
Ela
enxergava, em meio a tantas inconstâncias emocionais, a beleza daquele senhor.
Ela enxergava a pedra preciosa dentro do carvão, a rosa que desabrochava do
lamaçal...
ENXERGAR...
Certa
tarde ela pediu para titio Ludwig ajuda para perceber o luar... ele se riu daquele
capricho infantil...
Era
aquela época do mês em que a lua vai se escondendo até sumir na escuridão da
noite, para retornar, bem vagarosamente, a nos iluminar com seus raios de
prata...
Nesse
tempo do ano, dona Rute, mãe de Débora, assava um pãozinho meio redondo, bem
cheiroso e extremamente saboroso.
Foi
envolto nesse aroma que Beethoven fechou os olhos, enxergou o luar, e começou a
dedilhar sua Sonata ao Luar. Beethoven escutou e enxergou, não com os sentidos,
mas com a alma, e entendeu a Beleza da Alteridade!
Quando,
dias depois, a Infante Débora reapareceu, ela trazia um pedaço daquele pãozinho...
E lá, com a sonata já escrita, ele a tocou pela primeira vez...
Naquele
instante Débora enxergou o Luar...
ANDRÉ
NAVES
Especialista
em Direitos Humanos e Sociais, Inclusão Social e Economia Política.
Defensor
Público Federal. Escritor e Professor.
Conselheiro
do Chaverim, grupo de assistência às pessoas com Deficiência Intelectual, além
de diversas instituições voltadas à Inclusão Social.
Membro
do LeCulam, da FISESP (Grupo de Inclusão das Pessoas com Deficiência da
Federação Israelita de São Paulo).
Colaborador
do Instituto FEFIG, para a promoção da Educação.
Membro
do LIDE – Inclusão.
Comendador
Cultural.
www.andrenaves.com
Instagram:
@andrenaves.def
Enquanto o homem compreendeu as questões da existência humana através dos atributos e arquétipos aludidos pelos mitos antigos, algo presente nas fábulas tocava a alma de alguma forma, servindo como identificador de verdades, porém uma sociedade individualizada pelo patrimonialismo exacerbado, busca apenas escalar ao invés de elevar-se, pois não mede mais dias ações pelos impulsos da almas, mas sim pelas pílulas do consumo exacerbado. Isso implica na queda da apologia pelos contos de fada no mundo contemporâneo.
ResponderExcluirUm relato muito interessante...
ResponderExcluirA música faz isso c a gente, nos eleva a alma, transporta, transborda os sentimentos assim como a pintura 😍
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