Por Juliana Rehfeld
Acabamos de completar 4 meses do horrendo ataque terrorista perpetrado pelo Hamas no Sul de Israel. O declarado objetivo de eliminar o Hamas e trazer os reféns de volta está em curso e ainda estamos longe de um desfecho que permita à região ser reconstruída. Não me refiro aqui só às instalações, às edificações destruídas, mas principalmente às crenças e às ilusões que muitos de nós tínhamos sobre a situação de Israel e do judaísmo no mundo. A realidade das ameaças das quais não tínhamos percepção concretizou-de de tal maneira que dividiu o tempo em antes e depois. O antes - sonhos e ações de iniciativas conjuntas entre palestinos e israelenses dificilmente vão voltar como eram. Até porque muitos protagonistas desse empenho em estudar junto e construir uma paz pelo encontro foram brutalmente assassinados em 7 de outubro. E o depois? Abaixo um vídeo que afirma como o “day after” será particularmente difícil porque precisa consertar muito mais do que o que rodeia as pessoas, e muito o que está dentro das pessoas.
Há um vácuo de tempo, os dias passam e não passam ao mesmo tempo. Na parashá Mishpatim desta semana, estamos no deserto entre a vida no Egito, escravidão e perseguição das quais fugimos, e o futuro desconhecido com base numa promessa, uma promessa de alguém que fala em nome de um Todo Poderoso. Achávamos que estávamos seguros, mesmo com as muitas dificuldades, saímos para evitar sermos dizimados, e agora, no silêncio do deserto, procuramos um novo sentido, algo no que nos apoiarmos para construir uma nova vida. Na Parashá aceitamos com entusiasmo o pacto de Moisés com Deus e dissemos uma das mais famosas frases no Tanach,״ נעשא ונשמע ״ י faremos e ouviremos” nesta ordem, faremos mesmo antes de ouvir, isto é, cumpriremos mesmo antes de entender…
Há nesta parashá 53 mitsvot, leis detalhadas, para guiar uma nova convivência “abençoada” por Ele… devem ser seguidas para nos tornarmos um povo, um povo que - só assim - será o escolhido .
40 dias e 40 noites levam Moisés para voltar do Monte Sinai finalmente com as Tábuas da Lei, os dez mandamentos. Mesmo com divergências e tentações - bezerro de ouro - desenvolve-se um povo, uma comunidade que enfim se estabelecerá em Canaã, entre o Rio e o Mar!
Quando, em 1947, a recém-criada ONU restabelece a Canaã moderna ela já está menor, já perdeu dois territórios que deveriam se tornar a nova Jordânia, isto é, mais uma Jordânia criada para árabes no que era a Palestina. A Palestina judaica - ou Israel - é bem menor que a Palestina árabe na qual já estava criado um “Estado da Palestina” ou Transjordania, ou Jordânia.
Após a criação de Israel os vários sionismos concretizaram uma sociedade plural e progressista para a qual afluíram sobretudo jovens idealistas com a esperança de materializar um sonho socialista, um mundo mais agrícola e equitativo; esta base aos poucos foi sendo transformada por embate de ideias, sempre democrático, e por aumento da insegurança nas fronteiras e medo dos atentados terroristas. Somou-se a isso um grande sucesso econômico e tecnológico que transformaram o país numa “start-up nation”. Muitos árabes permaneceram em Israel após a fundação do Estado e são hoje 20% da população; muitos judeus de Massorti (tradicionais) a Haredim (ortodoxos) acorreram ao país e se multiplicaram e assim são hoje mais de 13% da população, e crescendo rapidamente….
Com todas estas alterações ao longo da 2a metade do século XX, Canaã deslocou-se para a direita, como o mundo inteiro urbanizou-se drasticamente - afastando de vez o ideal dos kibbutzim e se alinhando ao globo na busca de capital, no mínimo para “bancar” seus enormes gastos para defesa; foi também criando uma casta da população que abriu, no grito, caminho para hoje se instalar majoritariamente no poder - poder este cedido, com o aval do voto popular, sem dúvida, por um Benjamin Netanyahu com medo de ser condenado à prisão pelo Beit Ha Mishpat (Suprema Corte).
A gota d’água para que aqueles que ainda sonham com a sociedade fundada em 1948 saíssem às ruas, de gradual para maciçamente, foi o projeto de lei que reduz o poder do Supremo reprovada pela própria Suprema Corte em 1 de janeiro de 2024.
Dividido neste embate, distraído por uma aparente supremacia militar e onipotência e afastado dos disciplinados empenhos na segurança real, Israel foi profundamente golpeado em 7/10, e a inacreditável posição da opinião pública sobre o seu pleno direito à defesa golpearam a ilusão que tínhamos sobre o nosso “direito humano” de não sofrer antissemitismo; "racismo contra judeus é diferente, é admissível e “depende do contexto”".
Mesmo assim a vida, na medida do possível, continua em Israel, e aqui na Diáspora, em nós. O frio inverno está atrapalhando muito o dia-a-dia dentro das fronteiras, e tornando muito mais penosa a jornada dos soldados em Gaza.
O iminente acordo com o Hamas para troca de prisioneiros ainda não foi assinado e nestas alturas, dos reféns pelos quais ainda gritamos menos de 40% estão vivos… e palestinos demais perderam a vida, como previsto…
Por aqui, mesmo que num país tropical, o frio que se abateu em muitos relacionamentos com a recaída antissemita vai precisar de muitos agasalhos costurados com paciência, pomadas fortes contra as fundas feridas abertas e o tempo como silenciosa testemunha… um deserto moderno.
Que tenhamos força para estas reconstruções e possamos passar às futuras gerações uma nova esperança.
Shabat Shalom
Texto primoroso!!!! Juliana coloca em palavras o sentimento de muitos e faz uma linda conexão entre o hoje e Mishpatim. Expressa o que sentimos neste momento. E percebemos como tudo é volátil. Hoje, vejo que evoluiu o processo de troca dos reféns. O que o Hamas requisitava era algo inaceitável. Era o tempo necessário para a retomada de condições de agir e a liberação de condenados à prisão perpétua por vários atentados terroristas realizados dentro de Israel.
ResponderExcluirMais um texto extraordinário , mais uma aula para tentar entender nossa historia e o nosso atual e dificil dia a dia
ResponderExcluirJuliana Rehfeld, teu texto é incrivelmente lúcido e abrangente. Mais doloroso ainda só a realidade. Perspectivas... Vencer o Hamás em Gaza? Vai servir para algo... Está o Hezbollah, os Houthis, e pior ainda, se possível, a decadência do Ocidente. Erosão continua, ver "contextos" Harvard.
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