A Proteção ao Filho Rebelde
Por Angelina Mariz de Oliveira
Você conhece aquele filho que não estuda, não trabalha; desobedece aos pais, professores e odeia qualquer autoridade? Muitas vezes ele tem apetite compulsivo e descontrolado; em outras reage com violência quando é contrariado. Algumas vezes é viciado em tabaco, álcool ou drogas.
A sociedade olha com aversão para esta pessoa, que é expulsa das escolas e se transforma em um adulto agressivo. A família não consegue lidar com a questão, e o ‘caso perdido’ é motivo de vergonha. Isso, nas melhores hipóteses.
Não raramente pessoas com estas condições sofrem violência física, são expulsas de casa, se transformam em pedintes, ou são encarceradas. Também são internadas compulsoriamente, afastadas da sociedade, passam a vida em instituições que deveriam ser de saúde, mas são locais de prisão e tortura.
Quem não conhece um caso assim? Não encontrou uma pessoa com essa condição na rua? Não viu um filme ou leu um livro que de forma artística ou científica tentam contar, analisar, explicar esses casos?
Toda comunidade tem o desafio de lidar com pessoas com essas características, que decorrem de condições psicossociais e psiquiátricas. E a ocorrência dessas especificidades não é maior atualmente, apenas é mais visível.
As sociedades há centenas de anos, em sua grande maioria, optaram por afastar essas pessoas do convívio social, as escondendo em quartos nos fundos das casas, em sítios distantes na zona rural, ou em entidades de internação, hospícios e sanatórios; quando não as trancando em presídios. No extremo, foram exterminadas pelos governos de ideologias de supremacia racial. Mas essa situação foi questionada.
Com o avanço da psicologia, da psiquiatria e das medicações se procura proporcionar qualidade de vida, produtividade e inclusão para pessoas nestas condições. Passou-se a olhar para elas não como um ‘problema social’, mas como sujeitos vulneráveis, com necessidades especiais, e merecedores de proteção.
Foram desenvolvidos sistemas de diagnósticos, tratamentos e nomeadas essas condições: transtornos de humor, espectro autista etc.
No Brasil, desde 2015 temos uma legislação que torna obrigatório o respeito aos direitos humanos das pessoas que “que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”, definição encontrada no art. 2º da Lei nº 13.146.
Diz o art. 5º que uma pessoa com essas características “será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante”. É uma ampla garantia de direitos individuais e de inclusão social.
A Lei nº 13.146 trata e regula em mais detalhes sobre o direito à vida, ao convívio familiar, à habilitação, à reabilitação, à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho, à assistência social, à cultura, esporte, turismo e ao lazer, ao transporte, ao acesso à Justiça, entre outros. Como se vê, é uma legislação de inclusão de pessoas com necessidades especiais, e de responsabilização da sociedade, do governo, e da família em assumir, assegurar e promover a concretização dessa proteção e inclusão.
É uma legislação vigorosa, que, no entanto, encontra resistência à sua implantação, e dificuldade para sua completa aplicação. Ela parece ser inovadora, e é, se considerarmos a evolução das leis positivas dos sistemas normativos ocidentais.
Mas encontramos na Torá mandamentos que lidam com a questão do chamado ‘filho contumaz e rebelde’. Na parashá Ki Tetsê (21:18) lemos que os pais que têm um filho desobediente, ‘glutão e beberrão’, poderão denunciá-lo ao tribunal dos anciãos, para que esse filho seja apedrejado até a morte.
Essa solução parece violenta e desproporcional, típica de sociedades intolerantes e incapazes de lidar com as vulnerabilidades e fragilidades das famílias. E realmente poderia ser.
Seguindo o viés da intolerância e da severidade de julgamentos, durante a Idade Média Rashi retoma os ensinamentos talmúdicos que explicam esses mandamentos fazendo uma ligação com os passukim anteriores, que tratam do filho gerado com uma mulher que desagrada ao marido, que não é sua preferida nem sua amada. De acordo com nossos Sábios, a criança nascida dessa relação não terá respeito pelos pais e pelas mitzvot.
No século XIX o Rabino Samson Raphael Hirsch mantém a interpretação conjunta das leis sobre o filho rebelde ser consequência “de qualquer casamento que não venha da razão e do dever, mas sim, em virtude do desejo”. Apesar desse comentário, algumas páginas à frente, em sua Torá Interpretada, ele irá afirmar que “no caso do filho teimoso e rebelde, ‘jamais aconteceu e jamais acontecerá’, ele sempre foi e sempre será um ‘problema’ puramente teórico, pois as condições estabelecidas nesta lei impedem a sua existência na dimensão prática”. Seria o caso de mitzvot entregues a nós para termos o mérito de seu estudo.
A interpretação de que o julgamento e execução de um filho rebelde nunca ocorreram é originária dos debates talmúdicos sobre este caso. No Tratado de Sanhedrin aprendemos os inúmeros requisitos exigidos para a aplicação dessa pena capital.
Por exemplo, que seja menino, pois os comandos não se aplicam às filhas; que o filho seja maior de 13 anos e já tenha sinais físicos da puberdade; que o filho tenha roubado alimento de seu pai, e comido na propriedade de outra pessoa; que ele tenha roubado uma refeição preparada para seu pai e para sua mãe. Acrescente-se a necessidade de que o filho tivesse recebido castigos, como o açoitamento autorizado por um tribunal, e houvesse duas testemunhas para atestar que o filho havia sido advertido duas vezes, sem correção.
Também é necessário que o pai e a mãe, juntos desejem que o filho seja punido. Que não sejam cegos, surdos, mudos, mancos .... Além disso, a mãe deve ter voz, aparência e peso idênticos aos do pai! Após este último requisito a conclusão da Gemara é de que “nunca existiu um filho teimoso e rebelde, e nunca haverá um no futuro, uma vez que é impossível preencher todos os requisitos que devem ser encontrados para aplicação dessa halachá” (Sanhedrin 71a:14).
No entanto, é preciso dizer que, em seguida, Rabbi Yonatan vai relatar que ele presenciou uma vez a condenação à morte de um filho rebelde, e que inclusive sentou sobre sua cova depois que ele foi executado.
Ou seja, apesar da dificuldade em lidar com a condição do filho ‘teimoso e rebelde’, da inexistência de instrumentos sociais para acolher a família - pais e filho, nossos Sábios percebiam a inadequação da aplicação literal dos mandamentos da Torá. Um pai e uma mãe que não conseguem lidar com as dificuldades do filho, a ponto de entregá-lo para ser julgado por um tribunal, e uma corte capaz de condenar à morte o rapaz, não é uma hipótese meramente teórica, infelizmente acontecem situações semelhantes, como citado por Rabbi Yonatan. Essas atitudes, dos pais e da sociedade, são vistos com repulsa pelos rabinos do Talmude, que praticamente proíbem a aplicação dos mandamentos relativos ao filho rebelde.
Podemos fazer uma conexão desses mandamentos com outro subsequente, fazendo uma integração das mitzvot da Torá em sentido diferente daquele realçado por Rashi e Hirsch, podemos voltar à Torá e, ainda na parashá Ki Tetsê (Devarim 24:16), vamos encontrar o mandamento que proíbe que um filho seja morto pelo testemunho dos pais, conforme ensinado no Tratado de Sanhedrin (28a:1). Será que a Torá nos dá mitzvot em sentidos opostos?
Aqui fica perfeitamente compreensível a conclusão talmúdica de que os comandos sobre o filho rebelde nos foram dados para, nas palavras de Rabbi Shimon, serem explicados, interpretados, trazendo novas compreensões sobre a Torá e receber recompensa pelo aprendizado (Sanhedrin 71a:15). O estudo, debate e discussão por vinte séculos do caso do filho rebelde talvez tenha estado no inconsciente coletivo de todos os cientistas e humanistas que a partir do século XIX passaram a se debruçar nas pesquisas em busca de solução, amparo e ajuda para os chamados ‘filhos rebeldes’ e suas famílias. E nossa recompensa, que beneficia a humanidade, é poder participar da construção de uma comunidade menos violenta, mais inclusiva, justa e íntegra.
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