Você
sabia que Machado de Assis, o escritor maior da literatura brasileira e um dos
maiores autores da literatura de língua portuguesa, o criador da deliciosa
Capitu e do sorumbático Dom Casmurro, tratou o Judaísmo com respeito e
profundidade em uma de suas inúmeras temáticas desconhecidas pelo público?
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Machado de Assis |
Anita
Novinsky, em seu livro “O Olhar Judaico em Machado de Assis“, foi uma das
primeiras pesquisadoras a estudar este tópico em seus poemas.
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Anita Novinsky, pesquisadora e doutora em História Social pela Universidade de São
Paulo (USP) - foto: Gazeta do Povo |
Por
Machado ter sido rotulado de poeta menor, pouca atenção tem sido dada aos seus
versos.
Eu
mesma nunca os tinha lido com interesse até agora.
A
verdade é que Machado iniciou sua vida de escritor como poeta porém sua obra,
"Obra Completa de Machado de Assis" em 31 volumes, abrange
praticamente todos os gêneros literários.
Abaixo
está o soneto por ele dedicado a Antonio José, o Judeu, um escritor e
dramaturgo português, nascido no Brasil colônia, que após uma rica produção literária
e total reconhecimento pela sociedade lisboeta por suas irreverentes e
divertidas comédias, acabou sendo
degolado e queimado em praça pública pela Inquisição:
“Antônio José (21 de outubro de 1739).
Antônio, a sapiência da Escritura
Clama que há para a humana criatura
Tempo de rir e
tempo de chorar;
Como há um sol no ocaso, outro na aurora.
Tu, sangue de
Efraim e de Issacar,
Pois que já riste, chora. (MACHADO DE ASSIS)”
"Poucos
sabem, mas Machado começou sua vida literária como poeta. Foi fazendo sonetos
para os jornais que o escritor de D. Casmurro se firmou no mundo literário. E
como muito bem aponta Marcelo Corrêa Sandmann, Machado foi “um grande
conhecedor da tradição da poesia e das tendências poéticas de seu tempo, em língua
portuguesa ou noutras literaturas, bem como de um excelente artesão do verso”.
(SANDMANN, 2008,p.1)
Exemplo disto é
este poema curto de seis versos em que se mesclam tanto as referências ao
Eclesiastes como a vida ambígua do trágico dramaturgo. Se o Eclesiastes
apresenta-nos a filosofia das contradições e do paradoxo, uma vez que para a
humana criatura há tempo de “rir e tempo de chorar”; “tempo de plantar e tempo
de arrancar o que se plantou”; “tempo de nascer e tempo de morrer”; também
Antônio José experimentou a dubiedade de um Portugal que lhe deu tanto a doce
glória dos palcos como a ignominiosa morte na fogueira. Machado enfatiza a
descendência judaica de Antônio José ao fazer menções às grandiosas tribos de
Efraim e Issacar. Efraim era neto de Jacó e sua descendência deu origem a
figuras famosas do primeiro testamento como Josué, Débora e Samuel. Issacar,
filho de Jacó, também deu origem a uma das principais tribos do lado oriental
do Tabernáculo, ao lado de seus irmãos Judá e Zebulom. Anais do SILEL. Volume
2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.
Estas referências
na pena de Machado não são de forma nenhuma aleatórias, já que a perseguição ao
grupo hebreu remonta aos tempos bíblicos, desde as errâncias de Abraão pelo
deserto, tendo se acirrado no Renascimento com a Inquisição portuguesa e a
queima de milhares de cristãos-novos, dentre eles, muitos poetas e artistas
como o próprio autor de Guerras do Alecrim e da Manjerona. De nada adiantou sua
reputação como dramaturgo genial. Antônio José perdeu a vida com 34 anos, no
auge da fama e da criatividade. "
Com
relação à temática do Judaísmo abordada repetidas vezes por Machado, lembramos
de outro poema de sua autoria, A Cristã Nova, cujos versos me levaram à
pergunta introdutória deste texto.
Conta
o poema que o velho ancião judeu e sua filha Ângela, uma cristã recente, habitam
a incipiente Guanabara, em uma simples cabana ao pé do mar.
Ali
se situa a bela baía e seus arredores, terras estas que portugueses e franceses
já há algum tempo disputam, em combates ruidosos e sangrentos.
Nuno, um verdadeiro cristão português, é o enamorado de Ângela e um soldado
valoroso sob o comando do “ardido Bento“, no ano de 1701, na luta encarniçada
para expulsar definitivamente os franceses do Brasil.
Sob o temor de Ângela, Nuno segue a perfilar-se para a batalha,
deixando a moça aflita e pensativa. Nuno leva consigo o amor da mulher amada e
a bênção do ancião.
Os portugueses vencem, mais por valentia e desejo de proteger a terra
natal do que por excelência na guerra, e Nuno volta alegremente para sua amada.
Mas nem sempre a vitória na guerra aponta para a vitória final.
A alegria de Ângela ao ver seu amado voltando da batalha, incólume e
feliz, dissipa-se com a decisão do Santo Ofício de levar seu velho pai ao
tribunal da Inquisição.
A Cristã Nova
Primeira Parte
Canto IV
Sentada
Aos pés do velho
estava a amada filha,
Bela como a
açucena dos Cantares,
Como a rosa dos
campos. A cabeça
Nos joelhos do
pai reclina a moça,
E deixa resvalar
o pensamento
Rio abaixo das
longas esperanças
E namorados
sonhos. Negros olhos
Por entre os mal
fechados
Cílios estende à
serra que recorta
Ao longe o céu.
Morena é a face linda
E levemente
pálida. Mais bela,
Nem mais suave
era a formosa Rute
Ante o rico Booz,
do que essa virgem,
Flor que Israel
brotou do antigo tronco,
Corada ao sol da
juvenil América.
Canto VIII
Taciturno
Esteve longo
tempo o ancião. Aquela
Alma infeliz nem
toda era de Cristo
Nem toda de
Moisés; ouvia atento
A palavra da Lei,
como nos dias
Do eleito povo;
mas a doce nota
Do Evangelho não
raro lhe batia
No alvoroçado
peito,
Soleníssima e
pura... Descambava
No entanto a lua.
A noite era mais linda,
E mais augusta a
solidão. Na alcova
Entra a pálida
moça. Da parede
Um cristo pende;
ela os joelhos dobra,
Os dedos cruza e
reza, - não serena,
Nem alegre
também, como costuma,
Mas a tremer-lhe
nos formosos olhos
Uma lágrima.
Segunda Parte
CANTO VI
Neste instante
Cresce o tumulto
exterior. A virgem
Medrosa toda se
conchega ao colo
Do velho pai.
"Ouvis? Falai! é tempo!"
Nuno prossegue.
"Este comum perigo
Chama os varões à
ríspida batalha;
Com eles vou. Se
um galardão, entanto,
Merecer de meus
feitos, não à pátria
Irei pedi-lo; só
de vós o espero,
Não o melhor, mas
o único na terra,
Que a minha
vida... " Rematar não pôde
Esta palavra. Ao
escutar-lhe a nova
Da iminente
peleja
E a decisão de
combater por ela,
Inteiras sente as
forças que se perdem
A donzela, e bem
como ao rijo vento
Inclina o colo o
arbusto
Nos braços
desmaiou do pai. Volvida
A si, na palidez
do rosto o velho
Atenta um pouco,
e suspirando: "As armas
Empunhai;
combatei; Ângela é vossa.
Não de mim a
havereis; ela a si mesma
Toda nas vossas
mãos se entrega. Morta
Ou feliz é a
escolha; não vacilo:
Seja feliz, e
folgarei com ela..."
Canto VII
Sobre a fronte
dos dous as mãos impondo
Ao seio os
conchegou, bem como a tenda
Do patriarca
santo agasalhava
O moço Isaac e a
delicada virgem
Que entre os rios
nasceu. Delicioso
E solene era o
quadro; mas solene
E delicioso
embora, ia esvair-se
Qual celeste
visão, que acende a espaços
O ânimo do
infeliz. A guerra, a dura
Necessidade de
imolar os homens,
Por salvar
homens, a terrível guerra
Corta o amoroso
vínculo que os prende
E à moça o riso
lhe converte em lágrimas.
Canto VIII
Foge à estância
da paz o ardido moço;
Esperança,
fortuna, amor e pátria
A guerrear o
levam. Já nas veias
O vivo sangue
irrequieto pulsa,
Como ansioso de
correr por ambas,
A bela terra e a
suspirada noiva.
CANTO IX
Entre os fortes
alunos que dirige
O ardido Bento, a
perfilar-se corre
Nuno. Estes são
os que o primeiro golpe
Descarregam no
atônito inimigo.
Do militar ofício
ignoram tudo,
De armas não
sabem; mas o brio e a honra
E a lembrança da
terra em que primeiro
Viram a luz, e
onde o perdê-la é doce,
Essa a escola
lhes foi. Pasma o inimigo
Do nobre esforço
e galhardia rara,
Com que inda nos
umbrais da vida que orna
Tanta esperança, tanto sonho de ouro,
Resolutos a morte
encaram, prestes
A retalhar nas
dobras
Da vestidura
fúnebre da pátria
O piedoso lençol
que os leve à campa,
Ou com ela cingir
o eterno louro.
CANTO XII
Voa o moço à estância
Do ancião; e ao por
na suspirada porta
Olhos que traz
famintos de encontrá-la,
Frio terror lhe
empece os membros. Frouxo
Ia o sol
transmontando; lenta a vaga
Melancolicamente
ali gemia,
E todo o ar
parecia arfar de morte
Qual se pálida a
vira, já cerrados
Os desmaiados
olhos,
Frios os doces
lábios
Cansados de pedir
aos céus por ele.
Nuno estacara; e
pelo rosto em fio
O suor lhe caiu
da extrema angústia;
Longo tempo
vacila;
Vence-se enfim, e
entra a mansão da esposa.
CANTO XIII
Quatro vultos na
câmera paterna
Eram. O pai
sentado,
Calado e triste.
Reclinada a fronte
No espaldar da
cadeira, a filha os olhos
E o rosto
esconde, mas tremor contínuo
De um abafado
soluçar o esbelto
Corpo lhe agita.
Nuno aos dous se chega;
Ia a falar,
quando a formosa virgem,
Os lacrimosos
olhos levantando,
Um grito solta do
íntimo do peito
E se lhe prostra
aos pés: "Oh! vivo, és vivo!
Inda bem... Mas o
céu o céu, que por nós vela,
Aqui te envia...
Salva-o tu, se podes,
Salva meu pobre
pai!" Estremecendo,
Nela e no velho
fita Nuno os olhos,
E agitado
pergunta: "Qual ousado
Braço lhe ameaça
a vida?" Cavernosa
Uma voz lhe
responde: "O santo ofício!"
Volve o mancebo o
rosto
E o merencório
aspecto
De dous
familiares todo o sangue
Nas veias lhe
gelou.
CANTO XIV
Solene o velho
Com voz, não
frouxa, mas pausada, fala:
"Vês? todo o
brio, todo o amor no peito
Te emudeceu. Só
lastimar-me podes,
Salvar-me, nunca.
O cárcere me aguarda,
E a fogueira
talvez; cumpri-la, é tempo,
A vontade de
Deus. Tu, pai e esposo
Da desvalida
filha que aí deixo,
Nuno, serás.
CANTO XV
Um familiar lhe
corta
O adeus último:
"Vamos: é já tempo!"
Resignado o
infeliz, ao seio aperta
A filha, e todo o
coração num beijo
Lhe transmitiu, e
a caminhar começa.
Ângela os lindos
braços sobre os ombros
Trava do austero
pai; flores disséreis
De parasita, que
enroscou seus ramos
Pelo cansado
tronco, estéril, seco
De árvore antiga:
"Nunca! Hão de primeiro
A alma
arrancar-me! Ou se heis pecado, e a morte
Pena há de ser da
cometida culpa,
Convosco descerei
à campa fria,
Juntos a
mergulhar na eternidade.
Israel tem
vertido
Um mar de sangue.
Embora! à tona dele
Verdeja a nossa
fé, a fé que anima
O eleito povo,
flor suave e bela
Que o medo não
desfolha, nem já seca
De
acordo com seus biógrafos, Machado de Assis foi um leitor assíduo do Antigo Testamento
e do Eclesiastes e a saga dos judeus pelo mundo e a injusta Inquisição que
cruelmente os perseguiu foi um tema que sempre muito o interessou. Em seus
escritos, ele ora enaltece os judeus, ora preocupa-se com os sofrimentos a eles infligidos.
A
prova disto foi a quantidade de textos por ele escritos que abordam esta
temática:
O
Dilúvio
Espinosa
José
de Anchieta
Relíquias
da Casa Velha
Esaú
e Jacó
“Para Anita Novinsky, Machado, ao contrário
do que muitos pensam, apresenta intensa sensibilidade política pelos fatos
sociais de seu tempo, já que: (...) a geração de Machado, ou as próximas dele,
tinham talvez mais consciência dos efeitos da Inquisição do que nós, brasileiros
do século XX. Não há dúvida de que Machado de Assis sentia a questão judaica e
olhava com profunda simpatia para o percurso dos judeus a través da história. (NOVINSKY,
1990, p.7)
Interessante lembrarmos também Arnaldo
Niskier, que aponta o fato de que Machado, ao elaborar poemas em homenagem aos
cristãos-novos oprimidos, provavelmente estaria se deixando influenciar “pela
sua condição de mulato, solidário na dor da perseguição aos judeus."
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Sob a seta, Machado de Assis presidindo uma sessão da
ABL, Academia Brasileira de Letras, em 31/10/1905, um de seus membros
fundadores, e primeiro Diretor da mesma, apontado unanimemente pelos colegas. Fonte: G1
|
Este texto é uma colaboração de Itanira Heineberg para o grupo Esh Tamid.
FONTES :
POESIAS – volume 18 – Machado de Assis
www.ileel.ufu.br
A.L. do Nascimento Miasso – Universidade Federal São Carlos - UFSCAR