Campeã aos 98
anos?
Sobrevivente
do Holocausto?
“Quando
estou na piscina, sinto que estou descansando – não fisicamente, mas
moralmente. A piscina me salva de muitas situações opressivas”, disse Tausz
Ronai. “Algumas situações são enlouquecedoras. Se você nadar, você não chora. É
como sofrer uma lavagem cerebral por dentro.”
Por Itanira Heineberg
Em agosto último, nos Jogos Pan-Americanos de Medellín, Colômbia, espectadores, jornalistas e organizadores do evento postaram-se em fila ao longo de uma piscina para assistir a um medley de 400 metros. Eles estavam lá para ver Nora Tausz Ronai, que terminaria a corrida — que envolve nado peito, nado costas, borboleta e estilo livre — apesar de ter 98 anos.
Ao sair da
água, sob aplausos entusiasmados de todos os presentes, ela não aceitou a
oferta de uma cadeira de rodas, assim como sempre recusa a oferta da filha que
a acompanha nas competições, para percorrer as longas distâncias dos aeroportos
transportada nestas cadeiras.
Segundo ela,
sente-se como uma impostora, já que tem condições de caminhar.
Com estas
atitudes e sua história de perseverança durante o Holocausto, Nora tem
inspirado os atletas brasileiros de todas as idades. E a mim também! Ao nadar
toda a praia de Copacabana, recebeu o título de “Rainha do Mar.”
Nora nasceu em
1924 em Fiume, Itália, que mais tarde viraria Rjeka, no território Croata.
Seu avô era
um judeu tradicional e observante mas seu pai, aos 12 anos, se desgostou com o
judaísmo. Enquanto se preparava para o bar mitzvá, o rabino reclamou à sua mãe
que ele não estava se esforçando - o que a levou a acabar com sua coleção de
salamandras como castigo. Resultado: mais tarde, o jovem sem grandes convicções
religiosas converteu-se ao catolicismo, deixando Nora “tecnicamente católica”.
O
antissemitismo europeu atingia todos os judeus, fazendo os jovens tristes e
desgostosos com a situação em que viviam, atingindo o ápice em 1938 quando a
Itália aplicou as Leis Raciais e Nora e o irmão Giorgio foram expulsos da
escola.
Nora com seu
irmão Giorgio em Fiume, Itália, 1939. (Cortesia da família Ronai/ via JTA) |
A família
viveu, então, momentos difíceis e perigosos em sequências desagradáveis e
assustadoras, como quando levaram o pai de Nora, Edoard Tausz, às 4 horas da
manhã para o campo de detenção Torretta - e mais tarde encontraram o irmão
fugitivo numa estação de trem e o encarceraram junto com o pai por dois longos
meses.
Todos foram
enviados para Trieste e lá executados, mas graças à ajuda do ministro católico
Nino Host Venturi, Edoard e seu filho foram poupados.
Sem emprego,
sem recursos e sem nacionalidade, Edoard começou uma procura desesperada por
vistos para fora da Europa. Em 1941 o Vaticano disponibilizou 3 mil vistos para
o Brasil - e foi assim que a família reunida chegou ao Rio de Janeiro em busca
de outra vida.
O início de
imigrantes em geral é sempre difícil e no caso dos Tausz não foi diferente:
nova língua, novo clima, novos alimentos, muita adaptação!
Mas em pouco
tempo os dois jovens já estavam na universidade e livres das perseguições dos
nazistas.
Em uma viagem
de estudos com os colegas, o jovem Giorgio sofreu um acidente na estrada e
faleceu. Uma grande dor para a família, uma perda irreparável. Depois dos
horrores do Holocausto, uma morte inesperada e inconsolável para todos,
familiares, colegas, professores.
Nora estudou
Arquitetura, gostava da piscina e de saltos ornamentais aquáticos.
A mãe viveu
com câncer durante 10 anos e Nora e o pai conseguiram esconder dela a
verdadeira doença até o final. A família, agora reduzida, mudou com o feliz
casamento de Nora em 1952 com Paulo Ronai, um judeu da Hungria, tradutor,
revisor, crítico e professor naturalizado brasileiro. Paulo era professor de
latim e francês no Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro. O casal teve duas
filhas: Cora e Laura.
Nora, jovem,
estudante, filha consolando o pai viúvo, esposa, mãe, profissional: já é muito
para uma pessoa que teve de abandonar sua vida e conquistar uma nova.
E agora,
pasme! Além de suas atribuições, lutas, medalhas, vitórias, Nora também escreveu
um livro com a sua história, um legado para as filhas - nas palavras de Nora, “a
razão de sua existência neste mundo”.
Um livro
emocionante, muito bem escrito, idealizado, pensado, deixando para todos nós um
pouco de sua vivência, seus pensamentos, um pouco de sua alma. Nora escreve com
simplicidade em um relato suave, eufônico, que nos leva naturalmente a lugares e tempos
diferentes, momentos de angústia e incertezas: uma leitura que flui e nos
envolve.
Assim sendo, vou
deixar que Nora fale sobre ela mesma, uma vez que domina o esporte da caneta
com louvor!
“Vou parar
neste ponto minhas reminiscências. Essa minha autobiografia é a mais detalhada
e a mais precisa que a minha memória, já um tanto fraquejante, permite me
lembrar. Acho que não esqueci nada de importante, tanto mais que me servi
amplamente de minhas anotações e diários da época a qual me refiro, portanto,
posso assinar tranquilamente em baixo: Nora... Hum... Nora?
Mas qual
delas? A de quarenta anos, onde paramos, ou a de 96 anos que vos fala agora?
Quantas Noras eu já não fui no entretempo? Mas é claro que a que vos fala agora
é a Nora de 96 anos! Só que vocês podem estranhar o intervalo de 56 anos
separando as duas Noras e, por isso, cabem algumas explicações.
Sendo esta
uma autobiografia, logicamente não poderia ser completa! Mas, sendo assim, por que
não acabar antes ou depois do ponto final estabelecido aqui? Explico: prestes a
deixar minha cidade natal, Fiume, em 1941, fugindo das perseguições nazistas,
saí para a varanda de nosso apartamento, que íamos deixar para sempre, e olhei
bem para toda a serra que contornava a baía do Carnaro, especialmente para o
Monte Nevoso, onde havia esquiado feliz da vida tantas e tantas vezes. Queria
guardar comigo essa imagem para não perder completamente todas as boas
memórias
de infância. Nessa ocasião, invadiu-me uma raiva, uma fúria que chegou até a me
assustar: “Por que eles fazem isto comigo? Por que me proibiram de frequentar a
escola? Por que tivemos que vender o meu piano e os meus livros? Por que
arrancaram a minha terra natal de mim? Que mal foi que eu lhes fiz? Maldito
Schicklgruber (eu me recusava a pensar nele com o nome fantasia que adotou,
Hitler) monstro, palhaço, safado! Pois, saiba que eu vou para longe daqui, para
um país desconhecido por mim, mas vou estudar, vou trabalhar duro e vou vencer!
E você, seu nojento, você será morto e comido pelos vermes, enquanto eu e os
meus estaremos vivinhos, realizados e felizes. Isto eu te juro por Deus. Crepa!
(isso quer dizer “morre”, em fiumano, mas só se aplica aos animais). Crepa você
e todos os seus asseclas!
Então, de
volta da nossa viagem pela Europa, que eu ousaria chamar de triunfal,
assaltou-me uma sensação igualmente intensa e pujante como a fúria que eu
sentira ao sair da minha cidade natal — só que, desta vez, a sensação foi de
triunfo. Eu vencera minha guerra particular contra o tinhoso. Eu havia cumprido
o meu juramento.”
Nora, ao
centro, em uma foto da família em 2016. |
FONTES:
https://visionvox.net/biblioteca/n/Nora_R%C3%B3nai_O_desenho_do_tempo.pdf
Nenhum comentário:
Postar um comentário