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quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

‘Mitzvá Legal’ - A Apropriação de Bem Alheio

 

A Apropriação de Bem Alheio

Por Angelina Mariz de Oliveira

 

O ser humano desde o nascimento tem a compulsão de tentar possuir aquilo que deseja. Também os animais, e mesmo vegetais, têm o mesmo impulso, na competição por alimento, espaço, e vantagens reprodutivas.

Quando nasce o bebê, na sua restrita visão e experiência, ele crê que o Mundo inteiro lhe pertence. Na realidade, sabemos, o recém-nascido nada tem, e é totalmente dependente de seus pais ou cuidadores.

Durante o crescimento a criança descobre que seus poderes são limitados, se conscientiza de sua dependência e de que outras pessoas são autônomas. Faz parte do processo educativo humano aprender os limites para a realização do desejo de possuir o que não lhe pertence. É ensinado à criança que deve respeitar os bens das outras pessoas, que não deve se apropriar deles sem autorização.

Na Torá o comando inicialmente aparece de forma direta e objetiva: “Não furtará” (Shemot 19:13). O furto é a apropriação de um bem sem autorização. Inerente a este comando está o conceito de ‘propriedade’, ou seja, de que um objeto, um animal, uma área de terra etc. sejam usados com exclusividade por uma determinada pessoa ou coletividade.

Faz parte da vida social, mesmo entre animais, o respeito àquilo que pertence aos outros. Esse é um elemento essencial para a harmonia e equilíbrio nas relações e na sobrevivência.

No entanto, a oportunidade, a astúcia, e mesmo a força levam as pessoas a pegar o que não lhes pertence. Seja através de furto, roubo ou extorsões violentas, artifícios e todos os tipos de enganos e fraudes.

Esses abusos são punidos em todas as sociedades. Deus, por exemplo, determina na Torá (Shemot, 22) que o ladrão pode ser morto se for pego em flagrante durante a noite. Se for identificado após o furto, deve devolver o produto furtado e pagar uma indenização do dobro do valor. Se não for possível devolver aquilo que foi furtado, o ladrão deverá pagar quatro ou cinco vezes o valor, conforme seja um bem menos valioso, como um carneiro, ou mais valioso, como um touro. Se não tiver como pagar, ele será vendido como escravo.

No Tratado de Bava Kamma, os sábios do Talmude concluem que o pagamento de quatro ou cinco vezes não se aplica a quaisquer bens, apenas a carneiros e touros que tenham sido abatidos ou vendidos, que não possam ser restituídos a seu dono. A pena de pagamento em dobro, no entanto, é aplicada a quaisquer itens furtados.

Já o Tratado de Kedushim explica que o ladrão só poderia ser vendido para pagar o valor do bem roubado, não pelo pagamento da indenização em dobro. Rav Sheshet é mais leniente, ele afirma que se o valor do ladrão é mil, e sua dívida é quinhentos, ele não pode ser vendido para pagar a indenização.

Voltando à Torá, Moisés vai classificar o crime de sequestro como uma espécie de furto (Devarim, 24:7). Se a pessoa ‘roubada’ fosse vendida, o sequestrador deveria ser submetido à pena de morte. Por esse motivo, no Tratado de Sanhedrin os rabinos do Talmude concordam que o comando de ‘não roubar’ listado nos Dez Mandamentos inclui o sequestro de pessoas.

Interessante observar que não havia pena de prisão no projeto de sociedade dado aos hebreus por Moisés. Nas sociedades ocidentais modernas, pelo contrário, a prisão e a multa são as punições básicas (por exemplo: no Código Penal brasileiro, arts. 155 a 160). Por outro lado, as penas de morte e de venda como escravo para pagar as indenizações são proibidas pela Constituição Federal do Brasil (art. 5º, XLVII).

Outra punição encontrada na legislação brasileira para furtos de pequeno valor e de menor potencial ofensivo são as penas de detenção, de composição de danos e penas restritivas de direitos (Código Penal, art. 43 e 44). Também na Torá é prevista a atenuação da punição nos casos de furto ou roubo em que o ladrão que não foi descoberto reconheça publicamente seu erro. Nesse caso, o criminoso arrependido deveria devolver o produto do furto ou roubo, acrescido de 20%, e oferecer um carneiro em oferta de expiação (Vaikrá, 5:24-25).

A tradição judaica inclui no mandamento de não roubar outras ações, como: deixar os cantos das plantações sem colheita, para alimentar pobres viajantes e animais; não comprar produtos roubados; não participar de corrupção; não reter o pagamento dos trabalhadores. Todas são formas de se apropriar de bens de outras pessoas sem sua concordância.

O furto também pode ser de bens imateriais, como ideias, projetos, experiências coletivas. O uso deturpado da expressão ‘genocídio’ contra Israel é um exemplo de furto nesse sentido mais amplo.

Vivemos tempos em que muitas vezes o furto ‘esperto’, sem violência, disfarçado é aceito e até exaltado. Não é incomum ouvirmos críticas à vítima, por não ter agido com mais cautela e cuidado.

Apesar disso, não diminui a certeza da vítima de que foi injustiçada, de que a sociedade não a ampara, nem é equilibrada. Esse é um caminho para as reações pessoais, para a busca da Justiça pelas próprias forças. E quando isso acontece, quando a sociedade falha em corrigir os crimes, desponta o ciclo de violência.

Nosso desafio é lidar com a tendência atávica de pegar tudo que desejamos, sem restrição. Ser conscientes das várias formas de furto, de roubo, e evitar conscientemente esses atos, ter controle sobre nossos desejos. Ter a coragem de não nos deixar envolver pelos descaminhos aceitos culturalmente em nossa geração.


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