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quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Para Paula - Osvaldo Bazán

 

Fomos mais que colegas de trabalho — fomos grandes amigos.
A admiração profissional mútua, os gostos em comum, os sonhos sonhados juntos nos foram unindo cada vez mais. Mesmo depois de eu ter deixado a cidade que nos aproximou, seguimos cultivando a amizade: fiquei várias vezes na casa dela quando voltei para lá; ela ficou na minha quando veio para cá.

Claro, crescemos de jeitos diferentes, com vivências distintas e ideias que já não coincidiam tanto. Os gostos foram se separando, mas o respeito pelos tempos compartilhados permanecia. Ainda sonhávamos quase as mesmas coisas, mas cada vez mais divergíamos sobre os caminhos possíveis para chegar a esses sonhos.
Reconheço que fomos honestos com o que pensávamos.

A polarização chegou como um vendaval e varreu tudo.
Nos agarramos a algumas lembranças, mas o que restou foi apenas um cumprimento respeitoso por WhatsApp no aniversário — e às vezes, nem isso.

Até que um dia me apareceu nas redes o seu post: o temido “não é guerra, é genocídio”, com a bandeirinha da moda.

Não sei se acontece com vocês, mas agora entrar nas redes sociais dos conhecidos é como atravessar um campo minado: “Será que esse virou simpatizante dos panos na cabeça ou ainda tem bom senso?”.

As surpresas são constantes.

Abunda gente inteligente que se pendura em todos os discursos do eixo do mal disfarçados de flotilha perroflauta da MuGreta, nesse mar revolto de boas intenções horrivelmente executadas.

Pois bem, um dia —no mesmo em que, viajando por Israel, passei pelo campo desolador onde aconteceu o massacre da festa Nova, onde terroristas, alguns chegando de parapente na madrugada, mataram 364 jovens e sequestraram outros 44 (a maioria já morta em cativeiro), arrastando-os para o inferno que logo completará dois anos— vi a foto daquela pessoa que foi importante na minha vida cravada ali, com o mesmo desdém com que se fazem essas coisas.

“Não é guerra. É genocídio.” E a bandeirinha da moda.

Não sabia do seu interesse por temas do Oriente Médio — mas também não me surpreendeu.

Passamos juntos o tempo da Primeira Intifada, e não lembro que o assunto nos comovesse muito — estávamos mais interessados em rock argentino, pop norte-americano, cinema europeu e literatura latino-americana.

Eu também só comecei a me aprofundar no tema depois das imagens sádicas do massacre de 7 de outubro.

Tampouco sei até que ponto o interesse dela é real — quanto se informou, quais fontes usa, que dados conhece que talvez eu não conheça, o que ignora que talvez eu saiba… enfim, como chegou a uma afirmação tão categórica.

O processo pelo qual o Tribunal Internacional de Justiça concluiu que não houve genocídio por parte da Sérvia nem da Croácia levou 16 anos — de 2 de julho de 1999 até o veredito em 3 de fevereiro de 2015.

O processo que reconheceu o massacre de Srebrenica, em julho de 1995, como genocídio, começou em 1993 e só terminou em 2007.
Quase 14 anos.

Mas minha ex-colega de trabalho, que ouvia Prince e lia Kundera, decretou sentenciosa: “Pim pam pum, não é guerra, é genocídio.” E pronto, vida que segue.

Então decidi escrever pra ela.

Queria entender até onde estava envolvida, quanto o tema a afetava, o que se passava dentro dela para lançar uma frase dessas ao vento — tomar uma posição que, no caso dela (por ser comunicadora, ainda que fosse só nas redes sociais), não é pouca coisa. Há uma responsabilidade aí, não?

Mandei mensagem pedindo uma conversa — vamos falar sobre isso, ver se entendemos melhor.

Nenhuma resposta.

No dia seguinte, mandei de novo.
Nenhuma resposta.
No outro dia, de novo.
Nada.

E assim por vários dias.

Enviei minha crônica de Seul da semana passada e a versão em vídeo que fiz dela.

Ou ela me silenciou, ou simplesmente me ignorou.

Mas o que sei é que não quis discutir.

Ok, é direito dela — são suas opiniões, e quem sou eu pra julgá-las?

Mas, em nome dos anos compartilhados, achei que uma conversa seria pertinente.

Não deu.
Como diria o novo ídolo de Don Costantini, sempre a favor de tudo que é ruim e contra tudo que é bom: “não se pôde”.

Sou meio insistente quando uma ideia me toma, então vou aproveitar este espaço pra dizer a “Paula” (mudei os nomes, deixei só as iniciais) o que teria dito se ela me tivesse deixado.

É isto:

Imagina, Paula, que é sábado de manhã no seu povoado, aquele de que tanto me falava.
Você dorme com seu marido, Daniel, e seus filhos, Leandro e Ana.
De repente, sem saber de onde, entram na sua vila uns 500 homens encapuzados, armados, atirando e matando seu cachorro que descansava no quintal.
Não lembro o nome dele — faz tempo que não nos vemos — mas suponho que ainda dorme debaixo do limoeiro.
Os gritos do cachorro anunciam o horror que começa.
Você e seus filhos correm pro quarto do fundo.
Daniel sai pra ver se encontra algum vizinho pra proteger o povoado.
Você o vê de longe, ele te olha pela última vez… e você sufoca o grito quando vê dois desses barbudos o esfaqueando por trás.

Não vou continuar este texto.
Não consigo.

Queria escrever algo que a comovesse — colocá-la, com sua família, no lugar das vítimas de 7 de outubro.
Mas tentar pôr nos sapatos dessas vítimas os pés de alguém conhecido me ultrapassa.

Não posso seguir adiante.
Nem mesmo como argumento.

Estive em Nir Oz, o kibutz onde tudo aconteceu.
De um terraço, vi a Faixa de Gaza — uma linha cinza, opaca, a pouco mais de um quilômetro.
Vi o portão por onde entraram, o caminho que seguiram, e outras coisas que vou tentar esquecer nos próximos anos, porque não faz bem guardar tanto sofrimento — e que também tentarei lembrar, porque não quero chegar ao fim da vida sem ter presente o tempo que vivi.

Fico com vontade de saber por que “Paula” se interessa tanto pela Faixa de Gaza.
Tem todo o direito de querer ajudar gente que sofre.
É nobre.

O que me intriga é: por que, entre os 110 conflitos armados ativos no mundo hoje (segundo a Academia de Genebra de Direito Internacional Humanitário), ou os 59 listados pelo Índice Global da Paz em 2025 — o número mais alto desde a Segunda Guerra —, ou os 45 da Wikipedia… seu interesse é só por um?

O que está na moda.

Segundo o filósofo e jornalista Miguel Wiñazki, essa escolha tem nome: antissemitismo.

Mas Wiñazki é judeu, e você sabe como são os judeus.
Exageram, mentem, têm nariz adunco e querem roubar a Patagônia — ou, no mínimo, os sorvetes Jauja de El Bolsón.

Tudo o que um judeu diz com nome e sobrenome é “fake”.
A verdade está com os encapuzados, armados, gritando.

Aprendi isso vendo as redes e lendo os grandes meios do Ocidente.
Funcionam assim: checagem oficial pra tudo que vem de países democráticos, e credibilidade absoluta pro “Ministério da Saúde da Palestina” — que, detalhe, é o Hamas.

Ninguém pensa que qualquer informação vinda de um território controlado pelo Hamas é censurada.
Ninguém lembra que Cruz Vermelha e Médicos Sem Fronteiras só dizem o que os terroristas permitem.

Mas sim, controlemos o Ocidente — porque os terroristas não mentem.

Sigo.

O que mais me impressiona é que ninguém parece perceber o paradoxo: as mesmas pessoas que exigem controle absoluto de tudo o que vem do Ocidente aceitam sem questionar qualquer informação vinda do Hamas.
Basta o logotipo de um canal “alternativo” para que uma frase vire verdade.
Enquanto isso, o Ocidente, o mesmo que nos permite escrever e opinar livremente, é pintado como o vilão.

As redes se encheram de pessoas virtuosas que se declaram “do lado certo da história”, embora nunca tenham aberto um livro de história.
Quando a complexidade aparece, desaparecem também a compaixão e a razão.
Tudo é transformado em espetáculo moral — com bandeirinhas, hashtags e slogans que se repetem sem reflexão.

E é aí que sinto saudade da “Paula” que conheci.
Aquela que lia, que duvidava, que questionava, que sabia ver nuances.
A que tinha humor.
A que preferia uma boa conversa a um rótulo.
Não essa versão reduzida a um post de rede social, reproduzindo certezas de terceiros como se fossem descobertas próprias.

No fundo, não é só sobre ela.
É sobre todos nós — essa pressa de nos alinhar, de gritar certezas antes de entender o que está acontecendo.
Essa compulsão de escolher um lado como se fosse um time de futebol, e não uma tragédia humana.

Mas nada disso muda o que vi.
Vi casas queimadas, brinquedos retorcidos, fotografias carbonizadas.
Vi paredes com marcas de sangue e silêncio no ar.
E vi também o outro lado: jovens com medo, mães desesperadas, civis que não escolheram viver no meio de um inferno político.
A dor não tem dono, mas as escolhas têm consequências.

A palavra “genocídio” — que você, Paula, postou com leveza — é pesada demais pra ser usada como legenda.
Carrega o peso de tribunais, de testemunhos, de séculos de horror.
Não é uma palavra para redes sociais; é uma palavra para a História.

Não pretendo convencer ninguém.
Mas, se me lê, só te peço uma coisa: antes de repetir o que soa bonito, olha para as vítimas — todas elas.
Lembra que por trás de cada bandeira há pessoas, e que o sofrimento nunca é seletivo.

Hoje, se eu pudesse te ver, não pediria explicações.
Te convidaria pra um café, como antes.
Falaria do tempo, de música, de tudo o que nos uniu.
Depois, talvez, te mostraria o que vi — as casas, os nomes, os rostos.
E te perguntaria, baixinho, se ainda acredita que “não é guerra, é genocídio”.

Não pra te vencer num debate.
Mas pra saber se ainda há espaço entre nós para algo que não seja ódio.

Porque o que mais me dói, Paula, não é o que você pensa —
é que tenha deixado de querer conversar.


Tradução adaptada da carta de Osvaldo Bazán, original aqui.

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