DEUS TEM UM
PLANO God has a plan. Desde que você leu essa frase em um poster, há 35 dias,
ela está sempre te desafiando. Quando você a esquece, ela volta a se colocar na
tua frente, pairando a um metro e meio do chão. Uma frase que sorri, à espera
da tua concordância.
Você sabia
que não deveria ir lá. Visitar um lugar onde houve um massacre, para quê? Seria
um desrespeito. Uma atitude parente daquela que se vê em acidentes de
automóvel, onde os abutres voyeurs se acotovelam, obscenos. Você sabia que isso
não se faz. Como você poderia honrar essas 364 almas que com certeza ainda
estão lá, à espera de um milagre? Você decidiu que não iria. E foi.
Se um
israelense quer ir lá, ver esse lugar de perto, ele tem todo direito, mas você?
Você veio do Brasil para fazer trabalho voluntário, não para colecionar
horrores para contar na volta. E mesmo assim você foi.
Se o Claudio
não fosse, você não iria. Se ele não aprovasse, você saberia que é errado. Ele
tem a bússola moral sempre firme, sempre aponta o norte. Ele não disse não. E
você, já na defensiva, pensou, seja como for, vamos dividir isso também. Depois
de 55 anos juntos, tudo tem de ser dividido. E vocês foram.
Tua amiga
Liza queria muito ir. Chamou Shir, um amigo que esteve lá no dia. Ele virá
encontrar vocês, quer contar.
God has a
plan. Um campo de papoulas vermelhas. Margaridinhas amarelas em tufos, aqui e
ali. À nossa frente, um eucalipto já sem cor jaz sobre a grama bem verde, o
tronco levitando, desafiando a gravidade. Nem o eucalipto quis viver depois do
que viu. Mais ao longe, na direção de Gaza, colinas suaves, poucas árvores.
Havia chovido muito, a estrada de terra tinha sulcos largos e profundos, como
se um trator pesado tivesse ido e vindo várias vezes por ali. Perdido. À
esquerda, a uns 100 metros, via-se pequenos grupos de pessoas ao redor do que
pareciam ser árvores jovens, ainda sem folhas. Em toda parte, bandeiras de
Israel atadas entre duas árvores, insufladas pelo vento, prontas para zarpar.
Velas presas a barcos ancorados ao solo. Lama cor de sangue.
Meu nome é
Shir, ele diz, com um sorriso tímido que nunca sai do rosto. Shir, em hebraico,
quer dizer música ou poesia. Shir, você estava aqui naquele dia? Sim, sou
produtor musical (nome é destino), vim para a festa naquele dia em um grupo de
8 amigos. Você se esforça para se concentrar nele, porque o que de longe
pareciam árvores são, na verdade, hastes verticais com uma foto grande de cada
um dos 364 assassinados ali. Você sabe que a hora que começar a olhar essas
fotos, uma a uma, e ler o que as famílias e amigos escreveram, os poemas,
bilhetes de amor, de despedida, de saudades, você não verá mais nada.
Quando
começaram as sirenes muitas pessoas se deitaram no chão, com as mãos sobre a
cabeça, esperando que os mísseis parassem bem rápido. Eu tentava acalmar quem
podia, já já chega o exército, já vamos acabar com isso...Era difícil, porque
poucos minutos antes estávamos dançando, ouvindo música, felizes por estar na
natureza.
Ele não fala
nada sobre os terroristas atirando em todas as direções, correndo atrás de quem
tentava escapar. Dá um fast forward. Muitos estavam tentando ir embora em seus
carros, escolhi ficar. Os que não tinham carro, telefonavam para suas famílias
nos kibutzim e em Sderot, pedindo para ir buscá-los, sem saber que o horror
grassava lá também. Os que atendiam, não acreditavam, pensavam que era uma
brincadeira. (Imagine. Seu filho sai com seus melhores 7 amigos para passar a
noite em uma festa no campo, um lugar famoso pela beleza – até finais de ano de
Jardim da Infância são festejados lá. Sua maior preocupação? Filho, não beba
demais! Às 7 horas da manhã do dia seguinte, você recebe um chamado desesperado,
dizendo que os terroristas estão aqui, estão atirando em nós – como?
Terroristas em Israel? Um ou dois em um ataque pontual, isso conhecemos, mas
dezenas, centenas deles, em solo israelense? Atirando nos jovens, lançando
RPG’s sobre seus carros, para emboscá-los? Isso nunca aconteceu. E eis que.)
Vi as pessoas
tentando se esconder em banheiros químicos, debaixo do bar, atrás das
geladeiras. Decidi levar 3 feridos no meu carro a um hospital. Após algumas
dezenas de metros, os terroristas vieram correndo pela estrada, atirando na
nossa direção. Comecei a rezar o Shema (a reza mais importante do judaísmo,
“Escuta,ó Israel, o Eterno é nosso Deus, o Eterno é um.”, que se diz todos os
dias e quando se está diante da morte). Virei o carro, dirigi na direção
oposta, consegui chegar ao kibutz Be’eri. Jamais poderia imaginar... uma cena
daquelas. Corpos, partes de corpos, casas queimando, casas bombardeadas, em
alguns casos só uma parede em pé. Fugi de lá com os feridos ainda no carro, bem
rápido até Re’im. Lá também estava caótico, mas pude deixá-los até que fosse
possível chegar a um hospital. Voltei para a estrada e pouco à frente vi os
terroristas atirando nas pernas das pessoas dentro dos carros, e em seguida
ateando fogo. (A voz não treme, mas a mão direita, em forma de viseira, vai
várias vezes à testa, como se houvesse sol, mas era um dia frio e de chuva
fina. Não é o sol que ele não quer ver, é a escuridão. Nenhum menino de 24 anos
deveria ter essas memórias.)
Minha
gasolina acabou. Zero. Larguei o carro. Cresci nessa região, conheço tudo. Fui
andando, me escondendo pelos arbustos. Ouvia as armas automáticas perto de mim,
sabia que eram os terroristas. No exército não usamos armas automáticas.
Pensava em meu avô, sobrevivente (do Holocausto), foi partisan nos bosques na
Polônia. Na minha fuga, conversava com ele. Em nenhum momento conseguia
acreditar que estava vivo. Continuei andando até chegar em casa.
(Nada sobre
as horas seguintes, os dias seguintes. Fast forward). Fomos em 8, voltamos em
8. Tivemos sorte. Histórias horríveis. Rafaela, minha amiga brasileira, foi à
festa com seu namorado. Voltou sozinha. Ela sobreviveu porque escondeu-se com
ele sob uma pilha de corpos em um banheiro químico. Ele a protegeu com seu
corpo. Eles o encontraram. Assassinaram. Ela conta que todo o tempo em que
ficou ali, imóvel, ouvia os terroristas cantando cada vez que matavam alguém.
Enquanto ele
conta, muita gente foi se aproximando para ouvi-lo. Fazem perguntas, ele
responde, a mão furtivamente protegendo o olhar. Não terminou. Estamos vivos. A
vida tem algo que nos empurra, levanta, reconstrói. Vamos continuar. Nossa luz
permanece. O sorriso tímido se acentua, como se de repente se desse conta do
que acaba de dizer. Um silêncio emocionado de um segundo dura minutos. Uma
senhora muito idosa aproxima-se, com a voz trêmula agradece a Shir por ter
contado tudo isso. Ele, ainda mais acanhado, confessa que nunca havia contado
para estranhos. Você finalmente para de brigar consigo mesma, entendeu porque tinha
de vir. Uma última pergunta, Shir: se você pudesse dizer algo aos judeus no
Brasil, o que diria? Ato contínuo: Venham para Israel.
Você
agradeceu, abraçou, fotografou. Enquanto se afastam, você volta o olhar a um
abrigo antimíssil, dirige-se a ele. Caiado recentemente, milhares de buracos de
metralhadora completamente visíveis, feito uma teia fantasma. Em azul,
grafitado, Am Israel hai (o povo de Israel vive). Você entra. Não há porta, é
um espaço de 2 por 3 metros. Ali, como em outros semelhantes, até 30 pessoas
tentaram se proteger, e foram chacinadas. No chão, velas, algumas apagadas,
outras acesas, em desordem. Nas paredes, também caiadas, recados: meu coração
está com você. Saudades. Tenha paz. Não há placa explicativa, a dor é mais do
que concreta.
Você sai. O
ar cinza de chuva fina traz uma memória que não é sua. Você nunca esteve em
Auschwitz, nem Majdanek, nem Bergen-Belsen, mas sua alma, sim. Você já decidiu
que nunca pisaria na Polônia, porque lá estaria andando sobre cinzas. Mas sabe
que precisa ir, precisa levar os netos brasileiros e os israelenses. Todos têm
de saber de onde vieram. E aí está você, no campo da festa Nova. Das 3500
pessoas que vieram para celebrar o bem, 240 foram raptadas e 364 assassinadas.
Mas você não se sente pisando em cinzas, sente-se abraçando todos eles, e suas
mães, seus pais, filhos. Confesse: ao chegar lá ainda duvidava que seria capaz
de se emocionar só por estar lá. E agora você precisa gravar uma mensagem para
o grupo da família. Logo você, que tanto evita pieguice, precisa confessar para
seus filhos, nora, genro, cunhados, irmã, netos... que sim, vir aqui te dobrou.
Ninguém aqui está mencionando a tortura, os requintes sub-humanos e tudo mais
que sabemos. Só estamos falando com os que foram silenciados. Na gravação,
entrecortada pela voz que revela o que você não quer dizer, ouve-se ao fundo as
explosões. Você está ao lado de Gaza, ao lado da guerra, e no entanto, está em
paz. Mais segura do que na Avenida Paulista. Ao menos, se você morrer aqui,
saberá porquê. Não será por um celular.
Enquanto você
grava a mensagem, caminha a esmo e agora encontra-se frente a uma muralha. Um
ferro-velho vertical de carros calcinados. Quem tentou fugir de carro foi
metralhado e incinerado dentro dele. Centenas de esqueletos de aço, empilhados.
Uma muralha de ferrugem. Cena do apocalipse. Serão enterrados. Não foi possível
remover todos os restos humanos de todos eles, então pela lei judaica, têm que
ser enterrados. Nunca o termo cemitério de automóveis teve tal peso em almas.
Hora da despedida. Vá e pare em cada uma das ‘árvores jovens’. Encare: são 364 posters sobre hastes de metro e meio de altura. Na base de cada um, um círculo de grama, flores, pedras. Túmulos provisórios. Os posters sorriem. Lior Kipnis, 27. Enormes olhos cor de mel. “Adorou Morro de São Paulo”. Eviatar Nakmolis, 65. Boné de baseball e sorriso. “Tocava violino para os netos.” Maayan Tomayev, 18. Feições de bebê, cílios enormes. “Queria ser chef de cozinha.” Natalia Idan, 71. Sorriso asiático. “Fugiu da Rússia há 30 anos, veio à festa com a neta.” Parynia Tansa-arg, 26. Óculos sérios, dentes perfeitos. “Deixou filhos e esposa na Indonésia.” Mohammed Ibrahim, 19. Bronzeado, uniforme impecável. “Capitão no exército de Israel.” Efrat Kirst, 68. Bigodes fartos, cabelo grisalho em rabo de cavalo, camiseta de rock. “Ativista pró-palestinos.” Sheli Madmoni, 25. Olhos boreais, inescapáveis. “God has a plan.”
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