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quinta-feira, 2 de maio de 2024

‘Mitzvá Legal’ - Liberdade de Culto

LIBERDADE DE CULTO

Por Angelina Mariz de Oliveira 


Os hebreus saíram do Egito dos Faraós para firmar um pacto nacional com Deus, o Único Criador. Para exercerem sua opção religiosa, foi essencial garantir seu direito de ir e vir conforme sua vontade, sem restrições. Por isso, a cada nova praga, lemos que o faraó concordava aos poucos em ampliar a autorização para os hebreus saírem do Egito: apenas homens; depois homens e mulheres e crianças; e finalmente toda a população hebreia com seu gado. 

Na viagem pelo deserto as práticas de outras tradições religiosas, o que na época significava a idolatria, são fortemente reprimidas. Nos 10 Mandamentos os hebreus recebem de início a proibição de culto às divindades criadas por seres humanos. Em seguida, diversas vezes são transmitidos os comandos de destruição dos ídolos, árvores e locais de culto das religiões pagãs de Canaã (por exemplo, em Shemot 23:24 e Devarim 7:5). 

Essas mitzvot têm o objetivo declarado de proteger os hebreus e seus filhos de se tornarem idólatras, ou seja, de acreditarem que objetos ou elementos da natureza possam lhes trazer saúde, riqueza, felicidade, sucesso etc. É preciso que os filhos de Israel sempre se lembrem de que Deus, o Criador Único, é a fonte de suas bênçãos; e que tenham consciência de que Ele é um ente ‘zeloso’. 

Então, aquele embate inicial com o faraó se tratou do direito dos hebreus de servirem a Deus, mas não o direito de optar por servir às divindades dos povos que viviam na região. É emblemático o episódio no qual parte da liderança israelita decide cultuar baal, nos rituais ensinados por mulheres midianitas e moabitas, e milhares de pessoas são mortas por uma peste enviada por Deus (Bamidbar 25:1-9). 

O Tanach vai nos relatar a constante prática pelos hebreus e judeus de idolatria e do culto a divindades estrangeiras. Mesmo o Rei Salomão vai edificar altares e oferecer sacrifícios para deuses dos amonitas, moabitas e de outros povos (Reis I, 11:5 8). Sempre essas ‘opções’ são criticadas e castigadas, com consequências duríssimas. 

No entanto, não existe nenhum mandamento comandando os hebreus, e depois os judeus, a obrigarem outros povos a não serem pagãos, ou a terem cultos e relações com Deus por outros parâmetros diferentes dos instruídos na Torá. Apesar disso, em vários momentos da História judaica ocorreram conversões ativas, sejam por proselitismo, sejam mesmo forçadas. 

Ou seja, a ‘liberdade de culto’ não é um princípio que estava vigente na tradição judaica. Como ocorria também em outras culturas. No entanto, entre alguns povos religiões diferentes eram toleradas, especialmente pelos romanos. O Rabino Lawrence Epstein nos conta que no Século I da Era Comum, 10% do Império Romano era judaico, algo em torno de 8 milhões de pessoas. 

Nessa época, no início da Era comum, no Tratado de Sanhedrin do Talmude (105a) os Rabinos explicam que todas as pessoas justas, mesmo as não judias, poderão usufruir o ‘mundo vindouro’, da era messiânica de paz e convivência. Já é uma manifestação escrita do respeito e reconhecimento do valor de outras culturas e religiões. 

Com a adoção do Cristianismo como religião oficial pelo Império Romano, em 407 da Era Comum foi proibida a conversão ao Judaísmo, sob pena de morte. E a mesma punição vigora até hoje em muitos dos países muçulmanos. Com isso, são quase 1500 anos que a tradição judaica se afastou do proselitismo. 

Com a dispersão forçada dos judeus pelo Império Romano, após a expulsão da Judéia e destruição de Jerusalém, a questão da ‘liberdade de culto’ começou a se tornar uma conquista essencial para a manutenção do Judaísmo rabínico. A liberdade religiosa ganha maior importância no mundo ocidental quando ocorrem cismas e divisões dentro do Cristianismo, com os consequentes séculos de guerras, perseguições e expulsões. 

Com o Iluminismo, veremos as nações incluindo em suas legislações nacionais o direito expresso à liberdade religiosa: 

- Em 1789, na França, foi proclamada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que protegia as religiões: “Art. 10.º Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”. 

- Em 1791 a Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos determinou: “O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício (...)”. 

- Em 1824, a primeira Constituição do Brasil, então Império, estabelecia: “Art. 5. A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”. “Art. 179. (...) V. Ninguém pode ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a Moral Pública”. 

Sabemos, no entanto, que a liberdade de culto e a liberdade religiosa não foram, nem são, plenamente praticadas. As religiões diferentes da adotada pelos governos eram, e são, toleradas, muitas vezes perseguidas sob alegações injustas e preconceituosas. 

Nesse percurso, muitas mentes judaicas de filósofos, pensadores, juristas e legisladores contribuíram para a elaboração destes textos normativos que se tornaram históricos e parâmetros para as atuais legislações ocidentais. Em Israel a questão da liberdade religiosa é inerente à Declaração de Independência de 14 de maio de 1948, como lemos: 

“(...) O Estado de Israel estará aberto à imigração de judeus de todos os países de sua dispersão; promoverá o desenvolvimento do país para o benefício de todos os seus habitantes; terá como base os preceitos de liberdade, justiça e paz ensinados pelos profetas hebreus; defenderá a total igualdade social e política de todos os cidadãos, sem distinção de raça, credo ou sexo; garantirá liberdade total de consciência, culto, educação e cultura; protegerá a santidade e a inviolabilidade de santuários e Lugares Sagrados de todas as religiões (...)”. 

Na atual Constituição Federal brasileira de 1988 vigora a garantia do art. 5, direito que já havia sido incorporado às normas constitucionais desde a Constituição Republicana de 1891: 

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; 

Com isso, constatamos que a construção do direito à liberdade religiosa começou a cerca de 3.500 anos, quando os hebreus receberam o direito de deixar o estreito dos Faraós e ir para o deserto fazer seu pacto com Deus, o Criador Único. Foram longos séculos de vivências e sofrimentos para a Humanidade perceber a importância da diversidade religiosa, da necessidade de existência de várias tradições religiosas, e de como a convivência com o diferente pode nos fortalecer, e não ameaçar e enfraquecer. 

Mas a liberdade de escolher a conexão espiritual não é uma conquista concreta. Ela é teórica e normativa em alguns países; em outros ela oficialmente é negada; em quase todos ela não é praticada. Vivemos em um tempo histórico em que nossa tarefa é tornar reais os direitos de culto, para nós judeus e para outras religiões. É inclusive uma tarefa e um desafio intra-religioso, dentro do próprio Judaísmo, promover o encontro, diálogo e respeito entra as diversas correntes e comunidades.

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