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quinta-feira, 6 de junho de 2024

‘Mitzvá Legal’ - O Dever de Resgatar os Sequestrados

 

Por Angelina Mariz de Oliveira


O Dever de Resgatar os Sequestrados 

A Torá estabelece a mitzvá de resgatar os sequestrados – Pidyon Shvuim. Este comando é encontrado na leitura conjunta de quatro comandos: “Não seja indiferente quando o teu próximo está em perigo” (Vaicrá 19:16); “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Vaicrá 19:18); “Não endurecerá seu coração e não fechará a sua mão a seu irmão” (Devarim 15:7); e “Lhe abrirás a tua mão” (Devarim, 15:8). 

No Talmude está declarado: “O resgate dos cativos é uma grande mitzvá” (Bava Batra 8b). Em seguida, Rabbi Yohanan vai explicar que o cativeiro é uma situação pior do que a fome, a espada (a violência), e a morte. Isso porque o refém está submetido a todas essas condições e ameaças simultaneamente. Por isso a qualificação do resgate de sequestrados como ‘Mitzvá Rabá’. 

Nesse mesmo sentido, Maimônides afirma na sua obra Mishnê Torá que o resgate de cativos é mais importante do que sustentar os pobres, ou vesti los, porque o cativeiro inclui a fome, sede, falta de roupas e constante risco de vida. Parte de nossos Sábios chegam a afirmar que para obter recursos para libertar um refém, se a comunidade precisar, deve vender seu Sêfer Torá, ou mesmo sua sinagoga (Rabbi Shabtai HaKohen – Shaz e Rabbi David ben Shmuel HaLevi – Taz). 

O Tratado de Gittin do Talmude, porém, vai estabelecer na Mishná que “os cativos não podem ser resgatados por mais do que seu valor monetário real, para o melhoramento do mundo – tikun haolam” (Gittin 45a). O objetivo era não incentivar sequestradores a capturarem judeus, e evitar um grande encargo sobre as comunidades. Assim quando a Mishná proíbe o pagamento de um resgate por um preço abusivo para a libertação de um judeu, está promovendo a proteção da comunidade maior, dos outros judeus, procurando trazer segurança para o mundo. 

Essa restrição vai receber algumas exceções. Qualquer valor de resgate pode ser pago se o refém for um sábio, uma criança, a esposa, ou o próprio sequestrado estiver efetuando o pagamento com seus recursos. No moderno Estado de Israel vai ser instituída outra exceção à Mishná de Gittin: no caso de negociações para libertação de soldados sequestrados por organizações terroristas. 

Essas negociações são criticadas por alguns rabinos (por exemplo, R. Shlomo Goren; R. David Golinkin). O motivo é que a libertação de milhares de terroristas (no caso discutido em 1985 foram 1150 terroristas por 3 soldados) traria enorme perigo para todos os israelenses. Isso porque incentivaria novos raptos, e porque centenas de terroristas estariam livres para voltar a atacar Israel. 

Após os sequestros de 7 de outubro de 2023, de cidadãos e soldados, crianças e idosos, esse debate voltou a ser intenso. O ‘resgate’ pedido pelos terroristas sequestradores dessa vez não é apenas a libertação de milhares de terroristas presos em Israel, mas que Israel deixe de defender seu território a partir de Gaza, retirando suas tropas e liberando o Hamas para voltar a agir. 

Entre os não militares sequestrados estava um brasileiro: Michel Nisenbaum. O governo brasileiro não fez nenhum movimento oficial para tentar negociar a libertação de seu cidadão, ao contrário de outras situações do passado de sequestro por terroristas. 

Durante o período da Ditadura Militar, o governo federal lidou com vários casos de sequestros por atos terroristas. Entre 1969 e 1979 quatro diplomatas estrangeiros foram capturados por movimentos guerrilheiros: os embaixadores dos Estados Unidos, da Alemanha e da Suíça, e o cônsul geral do Japão. Em todos esses casos a libertação dos estrangeiros foi negociada com a libertação de prisioneiros políticos. 

Em 1971 o cônsul brasileiro Aloysio Gomide foi sequestrado no Uruguai pelo grupo guerrilheiro Tupamaros. O resgate pedido era no valor de 1 milhão de dólares. O governo brasileiro oficialmente não negociava o pagamento de resgates, sob a mesma lógica da Mishná de Gittin: evitar outros sequestros. 

No entanto, existem indícios de que o governo federal ajudou na entrega do resgate, ou mesmo complementou a quantia, sendo que outra parte foi arrecadada por uma campanha conduzida pela esposa do cônsul Aloysio, Maria Apparecida Gomide, com a ajuda de apresentadores de televisão no Brasil. O cônsul foi libertado em 1971, após o pagamento de 250.000 dólares e da suspensão do estado de sítio. 

Na Constituição Federal de 1988 o terrorismo é definido como crime inafiançável, que não pode ser beneficiado com qualquer tipo de anistia, indulto ou graça (art. 5º, XLIII). Para regular esse comando, e em decorrência de diversos tratados internacionais assinados pelo Brasil, às vésperas das Olimpíadas do Rio de Janeiro foi publicada a Lei nº 13.260/2016, a qual define em seu art. 2º: 


“O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública. 

§ 1º São atos de terrorismo: (...) V - atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa: 

Pena - reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência”. 


O sequestro de Michel Nisenbaum se adequa perfeitamente a esta previsão legal. Cabe à Polícia Federal a investigação criminal, e à Justiça Federal brasileira o processamento e julgamento (Lei 13.260/2016, art. 11; Constituição Federal, art. 109, V-A, §5º). Mesmo o crime tendo ocorrido no exterior, como Michel era brasileiro é possível a aplicação da lei brasileira a crime praticado por estrangeiro contra cidadão brasileiro fora do país (Código Penal, art. 7º). Uma das condições para isso, porém, é serem identificados os autores do sequestro, mandantes, cúmplices e colaboradores. Outra condição que dificulta a punição pela legislação brasileira é que estes devem estar em território nacional. 

Os mandantes para os ataques que culminaram com o sequestro e assassinato de Michel Nisenbaum são conhecidos, pois existem confissões expressas em diversos meios de comunicação. Caberia assim o seu indiciamento e persecução penal, havendo a possibilidade de o juiz determinar a apreensão de bens, direitos e valores desses mandantes (Lei 13.260/2016, art. 12), que venham a ser localizados em outros países, bem como requerer sua prisão pela Interpol e outras organizações que atuam em convênio com a polícia federal brasileira.

Infelizmente, apesar da ‘notitia criminis’ amplamente divulgada, do conhecimento por todas as autoridades brasileiras dos fatos criminosos de terrorismo, sequestro e assassinato do cidadão brasileiro pelos terroristas de Gaza, nada foi feito. Mesmo que sejam grandes as chances de nenhuma dessas medidas serem eficazes - de não ser possível a prisão, ou a apreensão de bens e valores dos mandantes dos ataques de 7 de outubro de 2023 - a aplicação da lei brasileira em defesa de outros cidadãos brasileiros e da família de Michel Nisenbaum seria emblemática.

Um comentário:

  1. Muito bom, Angelina. Várias reflexões jurídicas surgiram, mas o mais importante, parece-me, é a questão que continua a ecoar: "a quais interesses o governo brasileiro se subordina?" Fraternais Abraços. Esteja com D´us.

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