A Função da Humanidade
Por Angelina Mariz de Oliveira
O ser humano foi criado para cultivar e guardar o jardim
plantado por Deus com árvores frutíferas. Um local irrigado com uma nascente
fértil, e habitado por animais terrestres e aves.
A tarefa parece simples: trabalhar e cuidar de um lindo
sítio. O motivo de nossa existência aparentemente não é complexo, nem
desafiador. A realização, porém, desde o início se mostrou complexa demais para
o espírito humano, curioso, questionador, independente. Ao que parece, ao
exercer o livre arbítrio a humanidade sempre está mais voltada para si mesma,
para a busca de satisfazer seus desejos, sem limites.
Desde a Torá o ser humano tem conhecimento - documentado por
escrito - de normas sobre como exercer adequadamente sua função junto às demais
criações de Deus. São cerca de 3.500 anos de estudos, lições, discussões,
interpretações, inspirações em mandamentos que regulam o respeito ao solo, à
vegetação, aos animais, aos demais seres humanos.
São alguns exemplos desses comandos bíblicos:
Cuidado com a proteção ao solo:
“Seis anos semeará seu campo e seis anos podarás tua vinha, e recolherás o seu
produto. E no sétimo ano, sábado de descanso será para a terra (...)”
(Vaikrá-Levítico 25:3-4).
Cuidado com a preservação da
vegetação: “Quando sitiares uma cidade por muitos dias, batalhando contra ela
para a tomar, não destruirás o seu arvoredo, metendo nele o machado (...)”
(Devarim-Deuteronômio, 20:19).
Cuidado com a preservação das
espécies animais: “Quando encontrar algum ninho de pássaros diante de ti, pelo
caminho, numa árvore ou no chão, com passarinhos ou ovos, e a mãe posta sobre
os passarinhos ou sobre os ovos, não tomarás a mãe estando com os filhos, mas
deixarás ir livremente a mãe (...)” (Devarim-Deuteronômio 22:6-7).
Respeito à dignidade de todos os
seres humanos: “E o estrangeiro não fraudará e não oprimirá, porque estrangeiro
vocês foram na terra do Egito” (Shemot-Êxodo, 22:20).
E um dos comandos dos Dez Mandamentos, que concede o direito
de descanso igualmente para todos:
“Seis dias trabalharás e farás
toda tua obra, e o sétimo dia é o sábado do Eterno, teu Deus, não fará obra
nenhuma – tu, teu filho, tua filha, teu servo, tua serva, teu animal e teu
estrangeiro que estiver em tuas cidades” (Shemot-Êxodo, 20:9-10).
Essas são algumas das mitzvot que ensinam a humanidade a
realizar sua natureza essencial, como cuidar das criações Divinas. Elas são
acompanhadas por dezenas de mandamentos que nos impelem a controlar nossos
desejos. Nos inspiram para que sigamos Deus, que se contraiu, se restringiu,
para dar espaço à criação do Universo. Também devemos evitar usar toda nossa
potencialidade e capacidade apenas para obter aquilo que desejamos, nos
afastando do objetivo básico de cultivar e cuidar, de criar e guardar.
Esses valores são compreendidos pela humanidade, e são tão
significativos que ainda são válidos, a ponto de atualmente serem encontrados
nas legislações. A proibição ao assassinato, por exemplo, é encontrada em todas
as culturas e códigos penais. É uma norma que cuida da vida, que restringe o
uso descontrolado da força e da violência.
A Constituição Federal do Brasil de 1988 contém como
elementos essenciais da nossa sociedade esses valores. São algumas das regras
fundamentais:
“(...) conservação da natureza,
defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da
poluição” (Art. 24, VI).
“(...) proteger a fauna e a
flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”
(Art. 225, §1º, VII).
“Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (Art.
5º).
“A República Federativa do Brasil
(...) tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana” (Art.
1º).
É farta a legislação que regula esses princípios e valores
constitucionais, com inúmeras normas e penalidades. Podemos citar as seguintes
normas do sistema legislativo brasileiro:
“Causar poluição de qualquer
natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde
humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa
da flora: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa” (Art. 54, Lei nº
9.605/1998).
“É proibido o uso de fogo na
vegetação (...)” (Art. 38, Lei nº 12.651/2012).
“Os animais de quaisquer
espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora
do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e
criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização,
perseguição, destruição, caça ou apanha” (Art. 1º, Lei nº 5.197/1967).
“Matar, perseguir, caçar,
apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória,
sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em
desacordo com a obtida: Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa” (Art.
29, Lei nº 9.605/1998).
“Praticar ato de abuso,
maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados,
nativos ou exóticos: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa” (Art.
32, Lei nº 9.605/1998).
“Induzir ou atrair alguém à
prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou
dificultar que alguém a abandone: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco)
anos, e multa” (Art. 228, Decreto-Lei nº 2.848/1940).
“Expor a perigo a integridade e a
saúde, física ou psíquica, da pessoa idosa, submetendo-a a condições desumanas
ou degradantes ou privando-a de alimentos e cuidados indispensáveis, quando
obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado: Pena –
detenção de 2 (dois) meses a 1 (um) ano e multa” (Art. 99, Lei nº 10.741/2003).
Apesar das leis, apesar de há no mínimo 3.500 anos sabermos
da necessidade de controlarmos nossa ambição, da necessidade de lembrar da
razão de nossa existência, não existe texto legal, nem poder estatal, ou
social, ou sequer religioso, que na prática consiga impedir a humanidade de
explorar o planeta até a exaustão, extinguindo espécies vegetais, animais e
recursos naturais; extinguindo povos originários e culturas.
Pode ser que não pratiquemos diretamente essas
transgressões, mas nos tornamos responsáveis quando consumimos e usufruímos
produtos e serviços que têm origens em atos ilícitos que atentam contra o
ecossistema e os seres vivos. Ou quando nos omitimos e nos calamos.
Começamos agora um novo ciclo temporal em nossa história. O
ciclo da terra, do Universo. Em Rosh HaShaná, no dia 1º do mês de Tishrei,
celebramos o Dia de Gestação do Universo – “Ha Iom Harat Olam”. Não é o dia de
criação da humanidade, que aconteceu apenas no sexto dia desse mês.
Para esses dias de reflexão, nesse ano, será que conseguimos
nos conscientizar de quais de nossos atos individuais estão voltados para a
idolatria ao consumo exacerbado, para a idolatria à contribuição para a
exploração abusiva de seres humanos e dos recursos naturais?
Será que teremos capacidade de retornar à essência de nossa
criação? Podemos conseguir nos transformar em melhores cuidadores e
cultivadores? Em ‘jardineiros’ das bênçãos que recebemos quando nascemos?
Temos os valores, temos as leis, temos o estudo, a
consciência, até sofremos com as consequências do descuido com o planeta e com
os outros seres humanos. O que nos falta para controlarmos nosso poder quase
ilimitado?
Que possamos refletir sobre essas questões, e escolher com maturidade nos encontrar com nossas qualidades originárias, retornar para o que realmente nos torna completos, íntegros. Espero que tenhamos coragem para tornar concretas e eficazes nossa legislação protetiva do ‘jardim’ no qual vivemos. Também precisamos de força para participar não apenas do ‘Tikum Olam’, mas também da reconstrução de nosso Mundo Fraturado, como nos alerta o Rabino Jonathan Sacks.
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