O Direito ao Shabat
Por Angelina Mariz de Oliveira
Depois que os hebreus saíram do Egito, atravessaram o Mar
Vermelho e o
deserto, chegando ao Monte Sinai, puderam ouvir diretamente
de Deus um
comando surpreendente para quem até então era servo do
faraó: lembrar
de não trabalhar no Shabat e descansar nesse sétimo dia
(Shemot 20:8
11). A mitzvá também foi inovadora para quem usava o
trabalho de outros
seres humanos e animais. Além dos homens e mulheres hebreus
adultos, o
Shabat foi criado para ser usufruído pelos filhos, filhas,
servos, servas,
animais do rebanho e estrangeiros.
Depois de trinta e oito anos após o evento no Monte Sinai,
uma nova
geração de hebreus se prepara para entrar em Canaã.
Acampados na
margem oriental de Jericó, eles ouvem o relato de Moisés que
reitera o
comando sobre o Shabat: cuidar para não trabalhar no Shabat
e descansar
nesse sétimo dia (Devarim:12-15).
Tradicionalmente o respeito ao Shabat é interpretado como um
mandamento, um dever. No entanto, é uma prática que tem
grandes
benefícios para a convivência familiar e comunitária, para a
saúde física e
mental, para a qualidade de vida de todos que são
beneficiados por esta
’ordem’. Por isso a guarda do Shabat tem a natureza de
direito, mantendo
sua característica de dever.
Isso é perfeitamente possível, diversas situações têm essa
duplicidade de
direito-dever, ou poder-dever. O exemplo clássico é o
exercício do voto, nos
países em que é obrigatório; outro é a formação escolar, nos
países em que
é obrigatória para crianças e jovens.
No Judaísmo a possibilidade de não trabalhar no Shabat é
vivenciada de
inúmeras formas: momento de lembrar e honrar a Deus;
apreciar a criação
Divina; participar de atividades comunitárias como serviços
religiosos,
estudos, encontros de grupos juvenis; convivência familiar;
descansar ... O
Shabat também traz regras para restrição de ações e
atividades, sempre
relacionadas à interpretação da definição de trabalho.
Ao longo de nossa história tri milenar, porém, algumas
exceções foram
criadas, como a possibilidade de não judeus poderem
trabalhar para judeus
no Shabat, se tiverem outro dia da semana de descanso. Ou
então em
situações de defesa da vida, e nesse aspecto se discute se a
obrigatoriedade de trabalhar no Shabat por exigência de um
empregador
não judeu, e garantir o sustento, seria uma forma de defesa
da vida.
Os benefícios do descanso semanal amplo e regular são tão
importantes
que esse sistema foi adotado por outros povos, culturas e
religiões.
Atualmente, muitas legislações trabalhistas garantem o
descanso semanal,
inclusive com remuneração.
No Brasil o direito ao descanso semanal foi legalmente
reconhecido no
domingo, em razão da maioria católica dos legisladores.
Assim em 1943 a
Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-Lei nº 5.454,
determinou:
“Art. 67 - Será assegurado a todo empregado um descanso
semanal de 24
(vinte e quatro) horas consecutivas, o qual, salvo motivo de
conveniência
pública ou necessidade imperiosa do serviço, deverá
coincidir com o
domingo, no todo ou em parte”.
A atual Constituição Federal de 1988 mantém essa preferência
pelo
descanso aos domingos, como lemos em seu art. 7º, “XV -
repouso semanal
remunerado, preferencialmente aos domingos”. Por esse
dispositivo, parece
que os judeus brasileiros não têm proteção legal para não
trabalhar no
Shabat, se não conseguirem um acordo com o empregador.
No entanto, o art. 5º dessa mesma Constituição institui o
direito à liberdade
religiosa nos seguintes termos: “VI - é inviolável a
liberdade de consciência
e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e
garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e
a suas liturgias”.
Essa norma é complementada no mesmo artigo pelo comando do
inciso VII
que expressamente determina “ninguém será privado de
direitos por motivo
de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política,
salvo se as invocar
para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e
recusar-se a cumprir
prestação alternativa, fixada em lei”.
O esforço para tornar concreta a liberdade religiosa
prevista no artigo 5º
envolveu diversas ações judiciais. Na esfera trabalhista,
para que o repouso
aos sábados fosse remunerado, e na esfera do direito civil,
para que alunos
e candidatos pudessem fazer provas e prestar concursos em
dias
alternativos aos sábados.
Caso emblemático da dificuldade em conseguir o direito de
respeitar o
Shabat foi o julgamento em 3 de dezembro de 2009 pelo
Supremo Tribunal
Federal de pedido de alunos do Centro de Educação Religiosa
Judaica para
fazerem as provas do Enem em data alternativa ao Shabat
(Suspensão de
Tutela Antecipada nº 389). Na ocasião a maioria dos
Ministros acompanhou
o voto do Ministro Gilmar Mendes, decidindo que “a
designação de data
alternativa para a realização dos exames não se revela em
sintonia com o
principio da isonomia, convolando-se em privilégio para um
determinado
grupo religioso”.
No entanto, a partir de 2017 o Enem passou a ser realizado
em dois
domingos (Edital nº 13, 07/04/2017). A decisão de exclusão
dos sábados
foi adotada após consulta pública pela internet realizada
entre 18 de janeiro
e 17 de fevereiro, pelo Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
O Portal do Ministério da Educação relata que mais de 600
mil pessoas
votaram na consulta, sendo que 63,7% escolheram o formato de
provas em
dois domingos. Diz o site do MEC: “Com a alteração, é
atendida também a
reivindicação de estudantes que têm por costume guardar os
sábados por
razões religiosas de acabar com o ‘confinamento’ de cinco
horas ao qual
eram obrigados a se submeter – acessavam o local de prova no
mesmo
horário que os demais e esperavam até as 19h (o pôr do sol)
para começar
a fazer o exame”
(http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/418-enem
946573306/46041-enem-passa-a-ser-realizado-em-dois-domingos-seguidos).
Em 2019 finalmente a Lei Federal nº 13.796/2019 garante aos
estudantes o
direito de respeitar os respectivos dias sagrados: “Ao aluno
regularmente
matriculado em instituição de ensino pública ou privada, de
qualquer nível,
é assegurado, no exercício da liberdade de consciência e de
crença, o direito
de, mediante prévio e motivado requerimento, ausentar-se de
prova ou de
aula marcada para dia em que, segundo os preceitos de sua
religião, seja
vedado o exercício de tais atividades”. Com isso, os judeus
obtiveram
autorização legislativa expressa para o cumprimento do
Shabat, sem serem
prejudicados pela ausência em aulas provas, que são marcadas
em outras
datas, ou substituídas por outros critérios de avaliação.
Consequentemente, vamos presenciar modificação na
jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal. Em 26 de novembro de 2020 foram
julgados
dois recursos favoráveis ao direito de respeito aos sagrados
religiosos,
firmando decisões que devem ser cumpridas por todos os
Tribunais, juízes e
entes públicos.
A decisão final no Recurso Extraordinário nº 611874 diz:
“1. A tessitura constitucional deve se afastar da ideia de
que a laicidade
estatal, compreendida como sua não-confessionalidade,
implica abstenção
diante de questões religiosas. Afinal, constranger a pessoa
de modo a levá
la à renúncia de sua fé representa desrespeito à diversidade
de ideias e à
própria diversidade espiritual. 2. No debate acerca da
adequação de
atividades administrativas a horários alternativos em
respeito a convicções
religiosas, deve o Estado implementar prestações positivas
que assegurem
a plena vivência da liberdade religiosa, que não são apenas
compatíveis,
como também recomendadas pela Constituição da República, a
teor do
inciso VII do art. 5º, CRFB, que assegura a “prestação de
assistência
religiosa nas entidades civis e militares de internação
coletiva”, bem como
do art. 210, §1º, CRFB, o qual dispõe que o “ensino
religioso, de matrícula
facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das
escolas públicas
de ensino fundamental. 3. A separação entre Igreja e Estado
não pode
implicar o isolamento daqueles que guardam uma religião à
sua esfera
privada. O princípio da laicidade não se confunde com
laicismo. O Estado
deve proteger a diversidade, em sua mais ampla dimensão,
dentre as quais
incluo a liberdade religiosa e o direito de culto. O limite
ao exercício de tal
direito está no próprio texto constitucional, nos termos do
inciso VI do art.
5º. 4. A fixação, por motivos de crença religiosa do
candidato em concurso
público, de data e/ou horário alternativos para realização
de etapas do
certame deve ser permitida, dentro de limites de adaptação
razoável, após
manifestação prévia e fundamentada de objeção de consciência
por motivos
religiosos. Trata-se de prática a ser adotada pelo Estado,
na medida em que
representa concretização do exercício da liberdade religiosa
sem prejuízo de
outros direitos fundamentais (...)”.
No mesmo sentido de garantir o direito de respeitar o dia
sagrado de cada
religião - o Shabat no caso do Judaísmo -, o julgamento do
Agravo em
Recurso Extraordinário nº 1099099 declarou:
“(...) 3. O direito à liberdade religiosa e o princípio da
laicidade estatal são
efetivados na medida em que seu âmbito de proteção abarque a
realização
da objeção de consciência. A privação de direito por motivos
religiosos é
vedada por previsão expressa na constituição. Diante da
impossibilidade de
cumprir obrigação legal imposta a todos, a restrição de
direitos só é
autorizada pela Carta diante de recusa ao cumprimento de
obrigação
alternativa. 4. A não existência de lei que preveja
obrigações alternativas
não exime o administrador da obrigação de ofertá-las quando
necessário
para o exercício da liberdade religiosa, pois, caso
contrário, estaria
configurado o cerceamento de direito fundamental, em virtude
de uma
omissão legislativa inconstitucional (...)”.
No Estado de São Paulo vigora desde março de 2021 a Lei nº
17.346,
promulgada pelo Governador João Dória, que regula amplamente
a
“Liberdade Religiosa”. Como não existe lei federal que trate
com a mesma
profundidade dos direitos de culto, essa regulamentação é
aplicável apenas
no Estado de São Paulo, até que seja sancionada norma de
igual teor pelo
congresso Nacional.
Em relação ao direito de respeitar o Shabat, encontramos os
seguintes
comandos:
“Artigo 9º - Todo indivíduo tem direito à liberdade
religiosa, incluindo o
direito de mudar de religião ou crença, assim como a
liberdade de
manifestar sua religiosidade ou convicções, individual ou
coletivamente,
tanto em público como em privado, mediante o culto, o
cumprimento de
regras comportamentais, a observância de dias de guarda, a
prática
litúrgica e o ensino, sem que lhe sobrevenha empecilho de
qualquer
natureza”.
“Artigo 15 - O direito à liberdade religiosa compreende
especialmente as
seguintes liberdades civis fundamentais (...)
X - observar dias de guarda e de festividades e cerimônias
de acordo
com os preceitos da religião ou convicção”.
Após um longo percurso de mais de três mil anos, os judeus
que vivem em
São Paulo têm o dever de lembrar-se do Shabat, como Deus nos
ensinou no
Monte Sinai; e também têm o direito de guardar o Shabat,
como Moisés nos
ensinou além do Rio Jordão – Éver haIarden. É uma
oportunidade rara em
nossa longa história. É importante ter consciência dessa
benção e usufruir o
máximo possível do descanso e conexão que o Shabat nos traz.