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terça-feira, 27 de agosto de 2024

Iachad (juntos - יחד) - por André Naves: Platero

 

Platero

         Não sei bem como foi...

Nem lembro direito em que escritório a gente tava! Acho que era na Comedoria do SESC Pompeia. Era lá sim!

A memória é esse suco da verdade. Os fatos só existem pelo que a gente experimenta. Como um suco de caju! Será que falta doce? Será que amarra a boca? Será que tá aguado? A gente tem de tomar para descobrir se tá no ponto!

De repente a gente vai esquecendo os detalhes, misturando os acontecidos, mas a lição fica. Eu não lembro bem onde nem quem. Só lembro da conversa... E, aos poucos, fui juntando as pecinhas desse quebra-cabeças para conseguir enxergar a cena toda.

Ou seja, o acontecido pouco interessa! A certeza é o saci que prega peças na gente! O legal é essa dúvida que aos poucos vai sendo dissipada. Parece até aquele nevoeiro de beira de estrada...

É como dizem: neblina que baixa é Sol que racha!

Então a gente tava lá na Comedoria falando sobre a Lina. O Zé, o João e eu, como sempre. Não tem como entrar no SESC Pompeia sem falar dela. É um tributo que a gente paga à genialidade.

É igual no MASP... A gente entra, fica boquiaberto com o vão livre, com o concreto bruto, e se encanta com a sutileza sublime dos cavaletes de cristal.

Força e Beleza unidas. Tempestade e calmaria. Essa era a Lina. 

O concreto também é poético, dizia o João.

Isso! O Zé, como de costume, falava com um resmungo. A gente nunca adivinhava se era a casmurrice ou o sotaque... A gente tem de aprender a língua de tudo! Tudo ensina: a gente tem que aprender a aprender!

O idioma em que sou mais fluente hoje é o dos olhares da Pilar! Depois de tanto juntos, se eu não o soubesse, era frito tal qual as sardinhas na brasa de Lisboa.

Luz Boa! Lisboa é a Salvador da Europa! O André que é calado, né Zé? Como que a gente aprende com isso?

Quem é calado, observa. Quer aprender. Quem quer aprender, também ensina. Sabe os nossos personagens? As nossas tramas? Tudo é ensinamento. Lembra do Nelson Rodrigues? A cada livro, história, ele ia aprendendo, ficando mais rico, mais complexo, mais ele... Cada um deles... Sabe os atores de teatro? Os leitores? A plateia? Todo mundo vai aprendendo...

Eu não sou calado, João. É que quem fala demais dá bom dia a cavalo. Não posso fingir costume nessa mesa... Salvador é a Roma negra!

Mas Lisboa é a Salvador européia!

Lá na península a gente tem a lenda do Platero, um burrico extremamente simpático e gentil. Ele aparece, inclusive, em vários livros meus.

Vamo trazer o Platero pro Brasil, André?

“Platero é pequeno, peludo, suave, tão macio por fora, que se diria todo de algodão.” Olha a singeleza disso. Um burro, de trabalho bruto e pesado, mas de algodão, suave e carinhoso. Essa é uma lição! Essa é A lição!

Tempestade e Calmaria! Mar calmo não faz viagem próspera, mas tempestade leva todos para os braços de Netuno! Platero é aula de harmonia, de equilíbrio!

Balaão se recusava a aprender com os sinais. A jumentinha precisou falar pra ele entender... Ele precisava enxergar, mas se recusava a perceber o quadro todo. No fim é isso! A gente precisa é estar aberto aos sinais, aos símbolos. Precisamos falar o idioma além das palavras...

Precisamos ouvir os burricos, as jumentinhas! Escutar os ventos, enxergar a Luz!

André Naves

 Defensor Público Federal. Especialista em Direitos Humanos, Inclusão Social e Economia Política. Escritor. Estrategista. Comendador Cultural.

www.andrenaves.com

Instagram: @andrenaves.def

Um comentário:

  1. Faltou citar (e citar as nossas fontes na perspectiva judaica, é mandatório) que a bela frase é o início de "Platero y yo", de Juan Ramón Jiménez.

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