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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

‘Mitzvá Legal’ - O direito ao Shabat


O Direito ao Shabat

Por Angelina Mariz de Oliveira


Depois que os hebreus saíram do Egito, atravessaram o Mar Vermelho e o

deserto, chegando ao Monte Sinai, puderam ouvir diretamente de Deus um

comando surpreendente para quem até então era servo do faraó: lembrar

de não trabalhar no Shabat e descansar nesse sétimo dia (Shemot 20:8

11). A mitzvá também foi inovadora para quem usava o trabalho de outros

seres humanos e animais. Além dos homens e mulheres hebreus adultos, o

Shabat foi criado para ser usufruído pelos filhos, filhas, servos, servas,

animais do rebanho e estrangeiros.


Depois de trinta e oito anos após o evento no Monte Sinai, uma nova

geração de hebreus se prepara para entrar em Canaã. Acampados na

margem oriental de Jericó, eles ouvem o relato de Moisés que reitera o

comando sobre o Shabat: cuidar para não trabalhar no Shabat e descansar

nesse sétimo dia (Devarim:12-15).


Tradicionalmente o respeito ao Shabat é interpretado como um

mandamento, um dever. No entanto, é uma prática que tem grandes

benefícios para a convivência familiar e comunitária, para a saúde física e

mental, para a qualidade de vida de todos que são beneficiados por esta

’ordem’. Por isso a guarda do Shabat tem a natureza de direito, mantendo

sua característica de dever.


Isso é perfeitamente possível, diversas situações têm essa duplicidade de

direito-dever, ou poder-dever. O exemplo clássico é o exercício do voto, nos

países em que é obrigatório; outro é a formação escolar, nos países em que

é obrigatória para crianças e jovens.


No Judaísmo a possibilidade de não trabalhar no Shabat é vivenciada de

inúmeras formas: momento de lembrar e honrar a Deus; apreciar a criação

Divina; participar de atividades comunitárias como serviços religiosos,

estudos, encontros de grupos juvenis; convivência familiar; descansar ... O

Shabat também traz regras para restrição de ações e atividades, sempre

relacionadas à interpretação da definição de trabalho.


Ao longo de nossa história tri milenar, porém, algumas exceções foram

criadas, como a possibilidade de não judeus poderem trabalhar para judeus

no Shabat, se tiverem outro dia da semana de descanso. Ou então em

situações de defesa da vida, e nesse aspecto se discute se a

obrigatoriedade de trabalhar no Shabat por exigência de um empregador

não judeu, e garantir o sustento, seria uma forma de defesa da vida.


Os benefícios do descanso semanal amplo e regular são tão importantes

que esse sistema foi adotado por outros povos, culturas e religiões.


Atualmente, muitas legislações trabalhistas garantem o descanso semanal,

inclusive com remuneração.


No Brasil o direito ao descanso semanal foi legalmente reconhecido no

domingo, em razão da maioria católica dos legisladores. Assim em 1943 a

Consolidação das Leis do Trabalho, Decreto-Lei nº 5.454, determinou:


“Art. 67 - Será assegurado a todo empregado um descanso semanal de 24

(vinte e quatro) horas consecutivas, o qual, salvo motivo de conveniência

pública ou necessidade imperiosa do serviço, deverá coincidir com o

domingo, no todo ou em parte”.


A atual Constituição Federal de 1988 mantém essa preferência pelo

descanso aos domingos, como lemos em seu art. 7º, “XV - repouso semanal

remunerado, preferencialmente aos domingos”. Por esse dispositivo, parece

que os judeus brasileiros não têm proteção legal para não trabalhar no

Shabat, se não conseguirem um acordo com o empregador.


No entanto, o art. 5º dessa mesma Constituição institui o direito à liberdade

religiosa nos seguintes termos: “VI - é inviolável a liberdade de consciência

e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e

garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

Essa norma é complementada no mesmo artigo pelo comando do inciso VII

que expressamente determina “ninguém será privado de direitos por motivo

de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar

para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir

prestação alternativa, fixada em lei”.


O esforço para tornar concreta a liberdade religiosa prevista no artigo 5º

envolveu diversas ações judiciais. Na esfera trabalhista, para que o repouso

aos sábados fosse remunerado, e na esfera do direito civil, para que alunos

e candidatos pudessem fazer provas e prestar concursos em dias

alternativos aos sábados.


Caso emblemático da dificuldade em conseguir o direito de respeitar o

Shabat foi o julgamento em 3 de dezembro de 2009 pelo Supremo Tribunal

Federal de pedido de alunos do Centro de Educação Religiosa Judaica para

fazerem as provas do Enem em data alternativa ao Shabat (Suspensão de

Tutela Antecipada nº 389). Na ocasião a maioria dos Ministros acompanhou

o voto do Ministro Gilmar Mendes, decidindo que “a designação de data

alternativa para a realização dos exames não se revela em sintonia com o

principio da isonomia, convolando-se em privilégio para um determinado

grupo religioso”.


No entanto, a partir de 2017 o Enem passou a ser realizado em dois

domingos (Edital nº 13, 07/04/2017). A decisão de exclusão dos sábados

foi adotada após consulta pública pela internet realizada entre 18 de janeiro

e 17 de fevereiro, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas

Educacionais Anísio Teixeira (Inep).


O Portal do Ministério da Educação relata que mais de 600 mil pessoas

votaram na consulta, sendo que 63,7% escolheram o formato de provas em

dois domingos. Diz o site do MEC: “Com a alteração, é atendida também a

reivindicação de estudantes que têm por costume guardar os sábados por

razões religiosas de acabar com o ‘confinamento’ de cinco horas ao qual

eram obrigados a se submeter – acessavam o local de prova no mesmo

horário que os demais e esperavam até as 19h (o pôr do sol) para começar

a fazer o exame” (http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/418-enem

946573306/46041-enem-passa-a-ser-realizado-em-dois-domingos-seguidos).


Em 2019 finalmente a Lei Federal nº 13.796/2019 garante aos estudantes o

direito de respeitar os respectivos dias sagrados: “Ao aluno regularmente

matriculado em instituição de ensino pública ou privada, de qualquer nível,

é assegurado, no exercício da liberdade de consciência e de crença, o direito

de, mediante prévio e motivado requerimento, ausentar-se de prova ou de

aula marcada para dia em que, segundo os preceitos de sua religião, seja

vedado o exercício de tais atividades”. Com isso, os judeus obtiveram

autorização legislativa expressa para o cumprimento do Shabat, sem serem

prejudicados pela ausência em aulas provas, que são marcadas em outras

datas, ou substituídas por outros critérios de avaliação.


Consequentemente, vamos presenciar modificação na jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal. Em 26 de novembro de 2020 foram julgados

dois recursos favoráveis ao direito de respeito aos sagrados religiosos,

firmando decisões que devem ser cumpridas por todos os Tribunais, juízes e

entes públicos.


A decisão final no Recurso Extraordinário nº 611874 diz:


“1. A tessitura constitucional deve se afastar da ideia de que a laicidade

estatal, compreendida como sua não-confessionalidade, implica abstenção

diante de questões religiosas. Afinal, constranger a pessoa de modo a levá

la à renúncia de sua fé representa desrespeito à diversidade de ideias e à

própria diversidade espiritual. 2. No debate acerca da adequação de

atividades administrativas a horários alternativos em respeito a convicções

religiosas, deve o Estado implementar prestações positivas que assegurem

a plena vivência da liberdade religiosa, que não são apenas compatíveis,

como também recomendadas pela Constituição da República, a teor do

inciso VII do art. 5º, CRFB, que assegura a “prestação de assistência

religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”, bem como

do art. 210, §1º, CRFB, o qual dispõe que o “ensino religioso, de matrícula

facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas

de ensino fundamental. 3. A separação entre Igreja e Estado não pode

implicar o isolamento daqueles que guardam uma religião à sua esfera

privada. O princípio da laicidade não se confunde com laicismo. O Estado

deve proteger a diversidade, em sua mais ampla dimensão, dentre as quais

incluo a liberdade religiosa e o direito de culto. O limite ao exercício de tal

direito está no próprio texto constitucional, nos termos do inciso VI do art.

5º. 4. A fixação, por motivos de crença religiosa do candidato em concurso

público, de data e/ou horário alternativos para realização de etapas do

certame deve ser permitida, dentro de limites de adaptação razoável, após

manifestação prévia e fundamentada de objeção de consciência por motivos

religiosos. Trata-se de prática a ser adotada pelo Estado, na medida em que

representa concretização do exercício da liberdade religiosa sem prejuízo de

outros direitos fundamentais (...)”.


No mesmo sentido de garantir o direito de respeitar o dia sagrado de cada

religião - o Shabat no caso do Judaísmo -, o julgamento do Agravo em

Recurso Extraordinário nº 1099099 declarou:


“(...) 3. O direito à liberdade religiosa e o princípio da laicidade estatal são

efetivados na medida em que seu âmbito de proteção abarque a realização

da objeção de consciência. A privação de direito por motivos religiosos é

vedada por previsão expressa na constituição. Diante da impossibilidade de

cumprir obrigação legal imposta a todos, a restrição de direitos só é

autorizada pela Carta diante de recusa ao cumprimento de obrigação

alternativa. 4. A não existência de lei que preveja obrigações alternativas

não exime o administrador da obrigação de ofertá-las quando necessário

para o exercício da liberdade religiosa, pois, caso contrário, estaria

configurado o cerceamento de direito fundamental, em virtude de uma

omissão legislativa inconstitucional (...)”.


No Estado de São Paulo vigora desde março de 2021 a Lei nº 17.346,

promulgada pelo Governador João Dória, que regula amplamente a

“Liberdade Religiosa”. Como não existe lei federal que trate com a mesma

profundidade dos direitos de culto, essa regulamentação é aplicável apenas

no Estado de São Paulo, até que seja sancionada norma de igual teor pelo

congresso Nacional.


Em relação ao direito de respeitar o Shabat, encontramos os seguintes

comandos:


“Artigo 9º - Todo indivíduo tem direito à liberdade religiosa, incluindo o

direito de mudar de religião ou crença, assim como a liberdade de

manifestar sua religiosidade ou convicções, individual ou coletivamente,

tanto em público como em privado, mediante o culto, o cumprimento de

regras comportamentais, a observância de dias de guarda, a prática

litúrgica e o ensino, sem que lhe sobrevenha empecilho de qualquer

natureza”.


“Artigo 15 - O direito à liberdade religiosa compreende especialmente as

seguintes liberdades civis fundamentais (...)

X - observar dias de guarda e de festividades e cerimônias de acordo

com os preceitos da religião ou convicção”.


Após um longo percurso de mais de três mil anos, os judeus que vivem em

São Paulo têm o dever de lembrar-se do Shabat, como Deus nos ensinou no

Monte Sinai; e também têm o direito de guardar o Shabat, como Moisés nos

ensinou além do Rio Jordão – Éver haIarden. É uma oportunidade rara em

nossa longa história. É importante ter consciência dessa benção e usufruir o

máximo possível do descanso e conexão que o Shabat nos traz. 

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